A caça de javalis no Brasil

Com o abate de javalis liberado pelo Ibama devido aos estragos causados por esses animais, Trip foi até Goiânia conhecer os articuladores do primeiro congresso nacional de caça

Acontece que 4 da manhã no interior de Goiás faz muito frio. Ainda mais na caçamba de uma Chevrolet D-20 em busca de javalis selvagens. No céu amplo do cerrado, o Cruzeiro do Sul aponta para todas as direções enquanto circulamos por uma roça nos arredores de Edeia, cidadezinha de 11 mil habitantes a 120 quilômetros de Goiânia. Dois cilibrins de longo alcance, conectados ao motor da caminhonete, iluminam o milharal e a cana-de-açúcar. Faz-se muito silêncio. Além de ver brilhar os olhos do bicho, outra forma de encontrar um javali é ouvindo o animal quebrar o milho enquanto aproveita a escuridão para comer. “Já sentiu cheiro de javali, moço?”, me pergunta um morador da fazenda, que veio junto para cuidar que a gente não se perdesse nas estradas de terra vermelha. “Não”, digo. Mas, em algum momento da noite, respiro fundo o vento gelado, cheio de poeira, na esperança – meio brincando – de encontrar o tal bicho.

O tal bicho, javali-europeu, foi introduzido como um animal de criação na América do Sul, principalmente na Argentina e no Uruguai, e também em algumas partes do Brasil. No Rio Grande do Sul, animais asselvajados foram vistos pela primeira vez em 1991. Em 1997, já estavam em seis municípios, e uma década depois, em 200. A tomada foi similar em Santa Catarina, onde os javalis – e o híbrido javaporco, um bichão que pode chegar até 250 quilos – se encontram em grande parte do estado. Não há números oficiais para a quantidade de javalis no país, mas quem trabalha perto do problema calcula que já há mais de 1 milhão deles. Sem predadores, os animais procriam livremente, em ninhadas anuais que podem chegar a até dez leitões.

Soltos no ambiente natural, javalis provocam diversos impactos, da morte de espécies nativas ao assoreamento de leitos de rios. As consequências mais graves, porém, são econômicas e sociais: os porcos gigantes destroem lavouras, atacam pessoas e podem transmitir doenças para homens e animais de criação. Há registros de manadas no Paraná, em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Bahia, Tocantins, Acre e em Rondônia. “O javali é uma espécie invasora que está causando danos tremendos”, afirma João Riograndense, coordenador-geral de fauna e pesca do Ibama. “É uma questão que preocupa a instituição desde 1995. Até então, o problema estava localizado no Rio Grande do Sul, mas hoje está disseminado pelo país.”

Desde 2013 a espécie passou a ser considerada uma praga pelo órgão que, como forma de controle, liberou o abate dos animais, com armadilhas e armas. A decisão foi a legalização de uma prática que já acontecia pontualmente nos estados mais afetados, e está em linha com o que é feito em países como Estados Unidos, Austrália e França. “Agora queremos avaliar e aprimorar o processo”, diz Riograndense, que trabalha na elaboração de um plano de ação nacional para a questão.

Mesmo que o tema tenha uma dimensão polêmica, o plano de ação nacional deve continuar incluindo armas de fogo no controle da situação – quem executa a atividade de disparar contra os animais são, pois, controladores. A decisão do Ibama, porém, trouxe à tona uma outra palavra, que é tabu no país: caça.

Caçar é proibido no Brasil desde 1967, embora o texto da lei federal de proteção à fauna deixe espaço para uma regulamentação da caça amadorística, que nunca foi feita (a caça profissional é realmente proibida). A exceção é o Rio Grande do Sul, onde as temporadas de caça eram gerenciadas pelo Ibama gaúcho, com base em estudos técnicos, até serem canceladas por uma decisão judicial nos anos 2000.

Nesse contexto, deu-se em Goiânia durante o feriado de Tiradentes o primeiro Congresso Brasileiro de Caça, organizado pela Brasil Safari Clube, ONG criada há seis meses. (Dias antes do evento, corria uma petição contrária no site Change.org, que reuniu 11 mil assinaturas.) O encontro foi realizado entre 21 e 23 de abril, no auditório da Associação dos Magistrados de Goiás, com presença do Ibama – sopro de surrealismo que fez rir os que fumavam na área do estacionamento quando entrou uma viatura da fiscalização ambiental.

Com um javali bordado na gravata, o presidente da BSF, Cristian Gollo, abriu o encontro falando sobre a necessidade de mudar a imagem que a opinião pública tem da caça e dos caçadores – tema que se repetiu ao longo da conferência nas palestras e nas conversas de corredor. “A primeira coisa que vem na cabeça das pessoas é que caçador é sanguinário”, disse o português Francisco Charneca, diretor de ecologia da ONG. “Mas precisa argumentar. Não somos assim.” E, de fato, as pessoas que vou conhecendo não têm nada de sanguinárias.

Do lado de fora, em uma roda de conversa, o engenheiro agrônomo Rafael Salerno tira da mochila um boné com a palavra “caçador”, a segunda letra “A” substituída por um homem e um cachorro. “Me disseram que é a mesma coisa que escrever traficante”, conta. Rafael é coordenador da rede Aqui Tem Javali, que articula os controladores do país em grupos de conversa no Whats­App e no Facebook – pelos quais eles trocam experiências, fotos e vídeos de caçadas –, e participou, em março, de 
reunião sobre o problema dos javalis na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, ao lado do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente. “Somos profissionais, empresários, pais de família. Gosto de frisar isso, porque a gente é maltratado muitas vezes”, diz.

“É um povo bom, moço”, completa outro caçador.

PASSEIO NO CAMPO
“Quando comecei a caçar, não contava os preços pra minha mulher, não”, diz Átila Júnior, trabalhador da construção civil, que organizou a nossa caça em Edeia. Estamos na D-20 vermelha do policial militar Valdeci Gonçalves descendo a BR-060, que liga Brasília a Bela Vista, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, em um trecho duplicado recentemente. Caçar javalis não é uma atividade barata. Levantamentos informais calculam que um animal abatido tem um custo para o caçador de cerca de R$ 1.500, incluindo equipamento, transporte, munição, comida. Júnior e o mecânico Lindomar dos Santos, que completa nosso grupo, também criam cães de caça, uma outra fonte de gastos para os controladores. Eles calculam que este ano vão investir mais de R$ 10 mil somando os custos. Sem contar a ração dos cães, porque é melhor nem pôr tudo na ponta do lápis, dizem, para não desistir do hobby.

Em Edeia, a primeira “rodada de controle” dura quase toda a madrugada, a partir das 23 horas. O cigarro é a companhia para enfrentar a noite longa – álcool e armas de fogo não se misturam, e o café ficou esquecido em Goiânia. Uma lua cheia clareia a noite e faz os javalis se esconderem mais do que o costume. A noção de tempo se perde na paisagem monótona da lavoura: milho, cana, mato. Milho, cana, mato. E poeira vermelha, muita. Nas mãos, nas roupas, nas armas.

Já quase 2 da manhã, um estralo no milho. A tensão é palpável. “Apaga essa luz, moço”, diz Júnior para Lindomar, ainda com o cilibrim aceso. E desce. Parte do grupo entra na roça, enquanto contornamos a plantação para tentar encurralar o javali, mas é inútil. O momento passa tão logo veio, nos jogando de volta no frio da madrugada.

Pouco depois me ocorre que seria bom farejar a presa. É uma história que Francisco Charneca me contou dias antes para exemplificar seu argumento de que a caça é uma atividade natural humana (e que ele pretende transformar em livro). Depois de parar de fumar, Francisco afirma que começou a sentir com força o odor da caça. Faz pouco cheirou um javali que o deixou amarrado, paralisado, como os cães. Mas no fim foram a visão e a luz elétrica que promoveram nosso segundo encontro com os javalis de Edeia. Novamente sem sucesso.

QUESTÕES CONSERVACIONISTAS
A novíssima Associação Goiana de Caça e Conservação é um dos motivos de o encontro da Brasil Safari Clube ter sido feito em Goiás. A articulação da associação mostra a atratividade do assunto: em dezembro, o grupo organizou um encontro em que esperava reunir 20 controladores. As inscrições foram encerradas com 200. “Mesmo os caçadores não têm ideia do número de gente que gosta e apoia a caça”, conta o presidente do grupo, Daniel Terra, com um sorriso simpático e a voz clara e articulada de um representante de vendas. “Em pouco tempo teremos 3 mil caçadores legalizados.”

Para ser legalizado, o caçador brasileiro precisa de duas autorizações. Uma é a inscrição nos Cadastros Técnicos Federais do Ibama, que libera o abate do javali. Para o uso de armas de fogo, é preciso uma autorização do Exército, o Certificado de Registro, que é diferente do porte de arma regulado pela Polícia Federal. O CR é o mesmo documento usado por atiradores em clubes de tiro ou colecionadores de arma – os chamados CACs (caçadores, atiradores e colecionadores). Uma das medidas iniciais da recém-criada AGCC é ajudar moradores de zonas rurais na obtenção do CR. O mutirão que aconteceu durante o congresso reuniu 50 pessoas e ajudou a encher um pouco o auditório, que andava meio vazio. “Tem a hora de plantar, tem a hora de cuidar e tem a hora de colher”, Daniel diz. “Estamos preparando o solo ainda.”

A caça ilegal em regiões rurais é uma realidade. No interior do país, é normal comer tatu, paca, capivara. (O javali também precisa ser comido por quem caça: é proibido vender e até doar a carne.) A situação, no fim, me lembra o movimento a favor das drogas, salvo a ausência de certo glamour progressista: uma prática proibida, amplamente realizada, cuja falta de regulamentação marginaliza populações pobres, e que provavelmente teria menos impacto com regras claras a seguir, diminuindo a existência de um mercado paralelo.

Visão semelhante expressa a única mulher presente no congresso nacional da caça. “Sou a favor de regulamentar tudo: drogas, aborto, caça”, diz Clarissa Rosa, doutora em ecologia aplicada pela Universidade Federal de Lavras. A gaúcha, que hoje vive em Minas Gerais, defende a prática com argumentos ecológicos. “A caça é uma forma efetiva de manejo da população silvestre”, diz. Segundo ela, a caça legal diminui a ilegal, e, no caso de um invasor como o javali, leva ao aumento de animais nativos, que deixam de ser abatidos. Ela conta que, recentemente, os catetos – porcos nativos brasileiros – voltaram a aparecer no Parque Nacional de Itatiaia, possivelmente como consequência do controle de javalis.

No Brasil, são os grupos de proteção aos animais que normalmente se articulam contra a caça. A centenária Uipa chegou a enviar ao Ibama um ofício criticando o controle de javali. Mas nem entre as organizações ambientais o tema é simples. A WWF, por exemplo, maior organização conservacionista do planeta, tem uma posição internacional de “uso sustentável dos recursos naturais”, o que, em alguns casos, “pode incluir uma caça responsável gerenciada localmente”. Uma pesquisa publicada em abril pela União Internacional de Conservação da Natureza e dos Recursos Ambientais mostra o que seriam efeitos positivos da caça. No mais drástico dos dez estudos de caso, o número de rinocerontes brancos da África do Sul aumentou de 1.800 em 1968, quando a sua caça limitada foi regulada, para 18.400.

Muita gente no Congresso Brasileiro de Caça se enxerga como protetor do meio ambiente: querem diminuir o desmatamento, reintroduzir espécies ameaçadas de extinção. “Caçador é um fiscal da natureza”, diz durante um debate o economista Guaynumby Amazonas, um goiano com jeito de boêmio do Rio de Janeiro – onde estudou e morou por vários anos – que foi fundador, na década de 70, de uma antiga Associação Brasileira de Caça e Conservação.

Há uma torcida informal para que o búfalo, também uma espécie invasora em algumas regiões do norte do país, seja a próxima classificada como nociva. Mas para Cristian Gollo o momento é de focar no javali. “Já passou a hora do controle. Eu vejo o produtor rural chorando e me comovo”, diz.

PORCO NÃO TEM DESTINO
Só quando começa a amanhecer vamos buscar os cães – que são usados em mais de 90% dos controles de javali feitos no Brasil. Ainda está frio, mas o sol que surge no horizonte traz lembranças do calor que virá ao longo do dia junto com muitos insetos. Um velho agricultor da região indica um lugar que estaria infestado de javalis: depois do taquaral, um tanto de mato no meio da lavoura em que os bichos se escondem do dia.

O grupo de assalto volta a entrar na roça. Eu fico na picape, esperando, o sol da manhã cada vez mais alto, o céu agora de um azul plácido, ainda sem nuvem nenhuma. Ouve-se um tiro, depois outro: o velho do trator estava certo. Pelo rádio fico sabendo que os javalis escaparam. Contornamos a lavoura de milho para pegá-los na fuga. Umas formas pretas cruzam a estrada ao longe e entram na cana. Valdeci vai atrás, de arma na mão, e me faz sinal para levar a caminhonete. Sento na boleia e demoro para encontrar a ré. Enfim, contorno a cana em direção ao mato.

Às vezes, os companheiros em Edeia me contam, ficam duas, três, até cinco vezes sem conseguir matar o tal bicho. Uma perseguição pode durar o dia inteiro – mesmo os cães têm dificuldade para alcançar os javalis. “Javali é veiaco, moço. Porco não tem destino. Você até acha o rastro dele, mas até achar o porco...”, me diz Valdeci, enquanto entramos em um córrego para tirar do corpo a terra vermelha que empoeira tudo.

Aquele dia em Edeia era da caça.

Créditos

Imagem principal: Carlos Macedo/AG RBS

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