Terá o primeiro exilado brasileiro sentido saudade?
Será que o índio Essomericq contava aos filhos e netos franceses histórias e mitos de sua infância carijó? Terá o primeiro exilado brasileiro sentido saudade?
O que é a saudade, essa palavra que nós, falantes do português, herdeiros da melancolia dos navegantes, consideramos exclusividade nossa? Afinal, uma pesquisa da BBC com mil tradutores britânicos apontou a palavra como a sétima, entre todas as línguas, mais difícil de traduzir. É saudade que vem à cabeça quando, tomando uma taça de vinho, lembro da história de Binot Paulmier de Gonneville II. Ele deve estar descansando em algum cemitério próximo à cidadezinha portuária de Honfleur, no noroeste da França, onde morreu aos 95 anos, em 1583.
Foi casado, teve 14 filhos e usufruiu dos relativos confortos reservados, no século 16, aos nobres europeus. Como não deixou registros escritos, não sabemos o que pensava da vida, de Deus, dos franceses, se foi ou não feliz. E, principalmente, se sentia saudade de casa. Binot Paulmier nasceu índio, carijó, filho do cacique Arosca, na ilha de São Francisco do Sul (SC). Foi levado à França pelo capitão Binot Paulmier de Gonneville, o original, em 1505, com a promessa de ser conduzido de volta a seu país no prazo de 20 luas.
Os franceses vieram na nau L’Espoir (A Esperança), seduzidos pelas histórias de fortunas ganhas com o pau-brasil que ouviram dos portugueses. Depois de uma viagem acidentada, permaneceram um longo tempo em harmonia entre os carijós. A volta, no entanto, seria ainda mais atribulada. O escorbuto matou parte da tripulação e a boa artilharia de bordo os defendeu de piratas ingleses. Mas, já perto de casa, bucaneiros franceses os encurralaram. Quase sem munição, consumida no primeiro combate, tentaram fugir e arrebentaram o navio contra as pedras na costa francesa, perdendo toda a carga. O capitão de Gonneville e o índio Essomericq estavam entre os 28 sobreviventes.
Com o prejuízo nas costas, o navegador não conseguiu reunir investidores para uma nova viagem ao Brasil. Essomericq, então, foi condenado a nunca mais rever sua gente. Sentindo-se culpado, Binot batizou o índio com seu próprio nome, transformou-o em um de seus herdeiros e ainda casou-o com uma moça da família. Essomericq foi apresentado como um príncipe à sociedade, o que permitiu que ele desfrutasse dos benefícios de ser um aristocrata. Para o bem do índio e de seus descendentes, a história colou.
Constelações perdidas
A história de Essomericq é razoavelmente conhecida. Já foi samba-enredo, ameaçou virar filme, e dentre tudo o que se escreveu sobre ela vinte luas, livro de Leyla Perrone-Moisés, é o melhor e mais completo relato. Mas o mais interessante é imaginar o que se passou na alma do exilado carijó, abduzido para um mundo completamente diferente daquele em que viveu até a adolescência.
Ele trocou a mata atlântica e uma vida livre pelo cinza da Normandia, uma terra católica e cheia de regras. Casado, bem de vida, parece ter se adaptado bem. Mas terá sabido que, a partir de certo ponto, não teria para onde voltar? Que os carijós, originalmente senhores do litoral sul brasileiro, foram perseguidos pelos portugueses, haviam morrido, sido escravizados ou migrado à força para as missões paraguaias? Incorporado ao universo europeu, terá tido orgulho de suas origens? Ou renegado o passado e procurado ser um francês mais francês que os franceses? Terá, como Julia, a mãe de Thomas Mann, nascida em Paraty e levada para a Alemanha aos 6 anos, esquecido a língua materna? Será que Essomericq contava, aos filhos e aos netos, histórias e mitos de sua infância? Procuraria, olhando para o céu noturno, as constelações perdidas do hemisfério sul? Será, enfim, que o primeiro exilado brasileiro sentiu saudade? Se sim, ele pelo menos pôde se consolar com os bons vinhos franceses que podia comprar, um inegável upgrade em relação ao cauim, a cerveja quente dos índios, feita de mandioca, milho e saliva.
*ANDRÉ CARAMURU AUBERT, 47, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br