Brasil, país bunda?

Região anatômica glorificada ou símbolo da nossa passividade política? A bunda segue tema-chave na cultura brasileira – e ganha o mundo


A essa altura, em tempos acelerados de internet, já é história velha, mas sem dúvida estará em toda e qualquer retrospectiva do ano: era começo de fevereiro e, numa cena de poucos segundos, a atriz Paolla Oliveira caminhou, de costas para a câmera, a bunda numa microcalcinha, e fez-se a luz. Foram ofuscados o resto da trama da minissérie Felizes para sempre?, o roteiro, a direção de Fernando Meirelles — e de quebra a falta de água em São Paulo, a crise na Petrobras, os problemas no Oriente Médio: tudo foi esquecido diante daquela bunda.

Exageros à parte, bunda, todos sabem, é preferência nacional. Não sem polêmica e resistência. O próprio Meirelles afirmou, depois do fato consumado, que se soubesse o tamanho do barulho talvez não tivesse feito a cena. "O que me incomodou foi a Paolla ser comparada a essas mulheres Melão, Mulher Melancia. Ela é uma superatriz", disse. Na internet, a bunda de Paolla foi replicada em gifs, posts e alimentou voyeurismo, discussões feministas, piadas, orações. 

"Nos significados atribuídos à bunda na sociedade brasileira condensam-se algumas das ideias centrais presentes nas interpretações do país", reflete Arthur Bueno, doutor em sociologia pela USP. "De um lado, a sensualidade, o requebrado, a malemolência, encarados como consequências positivas da formação miscigenada do povo brasileiro. De outro, nossa suposta passividade política, associada à ideia de passividade sexual."

Foi com ênfase nessa ideia que, em 1986, membros do futuro Casseta & Planeta fizeram uma camiseta com a bandeira do Brasil em que no lugar do indefectível "Ordem e Progresso" lia-se: "Ê, povinho bunda".
 
"No Brasil, sempre existiu essa insatisfação em relação a nossas expectativas. Especialmente em épocas de frustração, que foi o caso do momento em que criamos a camiseta", conta Claudio Manoel, um dos integrantes do grupo. A crítica tinha relação com o conformismo, com a complacência com pequenos delitos. "Aquela coisa: sigo as leis de trânsito, mas sonego impostos", diz Manoel. "Eu posso fazer o que eu quiser porque não tem ninguém olhando." Segundo o humorista, a expressão "povinho bunda" foi inventada por eles, "mas não veio do nada". "Temos uma coisa de patrimonialismo. A gente sempre esperou o Estado brasileiro resolver tudo. Não preciso nem varrer minha calçada, afinal já pago o imposto", diz.

Para o sociólogo Bueno, numa expressão como "ê, povinho bunda", o que está em jogo é essa passividade. "Uma palavra frequentemente associada à bunda, e que demonstra bem sua ambiguidade no imaginário sobre o país, é 'malemolência', que serve tanto pra descrever um ritmo gingado e sensual quanto pra referir-se à indolência, à frouxidão ética, à falta de disciplina e de engajamento político que caracterizariam a cultura brasileira", comenta. "A bunda serve, assim, na visão que os brasileiros têm de si mesmos, tanto como indicador da nossa singularidade em relação a outros povos quanto da nossa corrupção moral."

Bunda Grande & Senzala
Nossa ligação com o traseiro é profunda. Gilberto Freyre, o grande sociólogo brasileiro, autor de Casa-grande & senzala, não deixou a parte anatômica escapar de suas observações sobre a formação do nosso povo: afinal, é nas raízes do Brasil que surgem também a preferência dos homens pela bunda e as condições antropológicas e genéticas para a invenção da bunda brasileira. Freyre cita o tema em vários livros (no poema "Casa-grande & senzala", em homenagem ao pernambucano, Manuel Bandeira escreve: "Se nos brasis abunda, / Jenipapo na bunda"), mas foi só em 1984 que escreveu um ensaio específico, para a revista Playboy, na edição de dezembro daquele ano, com Luiza Brunet na capa.
 

Sob o título "Bunda – Paixão Nacional", Freyre conta como os portugueses eram fascinados pelas "afronegras notáveis por suas bundas". E enquanto "não há evidência de mulheres indígenas terem se feito notar por nádegas notavelmente protuberantes", além das negras, as mulheres ibéricas, com genes árabes, também já tinham vantagem posterior sobre outras europeias. Da mistura nasce o bumbum brasileiro. Mas não é só o tamanho que importa, é também o movimento. "A miscigenação pode-se sugerir ter dado ritmos de andar e, portanto, de flexões de nádegas, suscetíveis de ser considerados afrodisíacos", afirma o sociólogo. "Os ritmos de andar da miscigenada brasileira chegam a ser musicais, na sua dependência de bundas moderadamente ondulantes." 

"Se, como recorda de música de Chico Buarque, o típico brasileiro carnavalesco espera 'o Carnaval chegar' para 'pegar em pernas de moças', como não destacar-se seu ensejo maior de apalpar bundas de mulher?", escreve Freyre. A bunda inspirou poetas, músicos, pintores, políticos. Vinicius de Moraes, em sua "Receita de mulher", afirma que é preciso "que exista um grande latifúndio dorsal", e foi o mesmo Vinicius que uniu forma e movimento nos versos mais famosos da música brasileira, inspirados, claro, por uma bunda que anda: coisa mais linda, mais cheia de graça, num doce balanço a caminho do mar.

Pastel de feira
Mas como anda hoje a bunda no Brasil? Com menos balanço, diriam alguns. O ideário estético da nação não passou incólume por pressões como as da globalização da moda e do avanço das técnicascosméticas.  

Há duas mudanças mais evidentes. A primeira já era temida pelo próprio Gilberto Freyre. Em seu último livro, Modos de homem & modas de mulher, de 1987, o sociólogo opõe a beleza morena de Sônia Braga, de ancas largas e peitos pequenos, que ele defende, ao visual "norte-europeizante" de Vera Fischer, alta, loira, que se disseminado pelo Brasil significaria uma perda da identidade que nos caracteriza. E esta linhagem ganhou corpo. 

Em uma "carta aberta" a Freyre, escrita em 2009, o jornalista e especialista em bundas Xico Sá lamentava: "Amigo, se já temias o avanço da modinha europeizante no madrugador 1986, não te darei uma boa-nova, muito pelo contrário: a fêmea brasileira se tornou a maior consumidora de tinta loira do planeta", escreveu Sá. "Sim, ainda vemos grandes bundas, ótimos latifúndios dorsais, mas na maioria dos casos contra a vontade das suas angustiadas proprietárias. Elas perseguem um outro corpo, um outro ideal de belezura, sonham com Giseles e outros fetiches ao melhor estilo varapau, bunda seca, bundinhas que não rendem um pastel de feira."

A outra mudança é mais recente: bundas malhadas, fortes, duras, às vezes com implante de silicone, visual comum entre as assistentes de palco de programas como Pânico na Band. São "bundas transgênicas", nas palavras do escritor Renzo Mora, que discorre sobre a história da bunda no episódio "A bunda" do programa Cultura pop brasileira, da Warner. "São bundas cheias de hormônio, essas moças levantam 500 quilos com as pernas", diz. "Eu tendo a concordar com o Leo Jaime, ele diz o seguinte: quem liga muito para celulite acaba gostando de bunda de homem." Para Mora, o Brasil teve sua época de ouro da bunda na época da pornochanchada. "A bunda da Matilde Mastrangi fez mais pelo cinema nacional do que a Ancine, a Lei Rouanet, a Petrobras", ri. 

Traseiro exportação
Questões de gênero também permeiam a questão da bunda nos anos recentes. No caso de Paolla Oliveira, por exemplo: enquanto muitos se comoviam com as formas da atriz, outros tantos se indignavam com a redução da mulher a um par de nádegas. "Eu acho que quando você reduz tudo à bunda, como ficou essa história da minissérie, você reduz demais: não se falou da interpretação, não se falou do papel, se falou apenas da bunda", diz a antropóloga Mirian Goldenberg. "Às vezes falam da bunda como se fosse um entidade à parte, é ela que atrai, que provoca tesão, e o tesão é muito mais do que isso. É impossível ficar atraído por uma mulher que é só uma bunda."
 
Caso famoso nessa tendência de personificação da bunda é o concurso Miss Bumbum, alvo de críticas por glorificar a objetificação da mulher. Daisy Donovan, apresentadora do programa inglês The Greatest Show on Earth, que viaja o mundo para estudar a cultura local a partir da TV, chamou o reality show de "festival da carne que resume como as mulheres são tratadas (e objetificadas) no Brasil". "Eu acho que é uma crítica válida, e eu tenho que aceitar a crítica", diz o criador do Miss Bumbum, Cacau Oliver. "Mas assim: eu não criei essa cultura, ela já existia. Só inventei um modo diferente de falar disso."
 

Essa cultura segue, em parte, porque o corpo tem força simbólica, como afirma Mirian Goldenberg. "O corpo, para a mulher brasileira, é um capital, ela consegue muita coisa no mercado de trabalho, no mercado sexual, no mercado de casamentos, em função do corpo", afirma a antropóloga. Dentro dessa visão, claro, a bunda tem papel fundador: nas pesquisas de Mirian, ela continua aparecendo em "primeiríssimo lugar" entre as preferências sexuais dos homens brasileiros. "No entanto, eu percebo que as mulheres vivem isso como uma prisão, não um poder: tanto que quando envelhecem elas dizem 'agora eu vou ser livre, vou viver meu corpo de uma forma mais livre, vou ser feliz, vou ser eu mesma'." Ela completa: "Eu diria que a maioria das brasileiras não estão assim tão preocupadas com a bunda nem querendo se preocupar com isso".

Quem teve que se preocupar com a bunda brasileira no ano passado foi o governo federal. A marca de esporte Adidas lançou uma linha de camisetas inspirada na Copa do Mundo que causou uma espécie de saia justa: I love Brazil, dizia a estampa, com o love no formato de, em vez de um coração, uma bunda feminina. Órgão do Ministério do Turismo, a Embratur — que nas décadas de 70 e 80 divulgava o potencial turístico do Brasil no exterior com mulheres de biquíni, junto com o Carnaval e o futebol — condenou as camisetas por fazer apologia ao turismo sexual. Com a polêmica, a marca acabou retirando das lojas a linha de camisetas, que seria vendida apenas no exterior.

Bottoms up
A bunda continua sendo tema no feminismo, principalmente nos Estados Unidos, agora que parece ocorrer uma espécie de descoberta da bunda por lá. A cultura pop americana, que no estereótipo clássico se preocupou sempre mais com peitos, foi invadida por traseiros: Nicki Minaj com o vídeo da música "Anaconda"; a parceria de Jennifer Lopez com a loira australiana de nádegas avantajadas Iggy Azalea no vídeo de "Booty"; Kim Kardashian quebrando a internet na capa da revista Paper. A revista Vogue americana afirmou em setembro que esta é oficialmente a "era da bunda grande". 

O sociólogo Arthur Bueno explica que, por muito tempo, a bunda foi vinculada antes de tudo à população negra nos Estados Unidos. "Por isso, talvez, diferentemente do Brasil, ela não tenha sido alçada a símbolo nacional ou adotada como alvo principal do desejo masculino", diz. "Nos Estados Unidos, só recentemente a bunda passou a adquirir uma presença mais significativa nos discursos hegemônicos sobre a vida sexual."

Essa, digamos, tendência não chegou de uma hora para outra na cultura americana (Jennifer Lopez, por exemplo, já está na ativa desde o fim da década de 90), mas só recentemente ganhou potência nacional, com o sucesso de cantoras como Beyoncè e Rihanna e também de desconhecidas como Jen Selter, a musa das selfies de bunda, que tem mais de 5 milhões de seguidores no Instagram. Tudo isso intensificou um debate sobre se essa tendência é parte de um empoderamento das mulheres ou se não passa de mera objetificação.

Embora a própria Kim Kardashian tenha dito que se sentiu empoderada ao fazer sua foto, a afirmação é polêmica. "Se a glorificação do bumbum em algum momento parecia vir de um lugar de poder, pois protestava contra padrões corporais impossíveis para as mulheres, agora parece o oposto", afirma a jornalista americana Sophie Gilbert no site da revista Atlantic. "Embora ninguém ainda tenha inventado uma maneira de remover o bumbum da mulher e torná-lo sua própria entidade desumanizada, muitos têm tentado." Para Mirian Goldenberg, não há novidade no sucesso de Kardashian. "Ela procura um sinal de distinção, precisa se diferenciar", afirma. "Aqui no Brasil quantas mulheres não fizeram sucesso por causa da bunda? É um fenômeno de cerca de vinte anos já."

Para fechar a temporada de bundas, outra cena de seriado, esta da televisão americana, se alastrou pela internet no começo de 2015: uma cena de beijo grego, o sexo oral anal, na série Girls. O personagem Desi, interpretado por Ebon Moss-Bachrach, colocou a cara e a língua entre as nádegas de Marnie, interpretada por Allison Williams. A cena causou polêmica nos EUA e abriu caminho para uma discussão maior sobre a liberdade sexual, a do ânus. 

Mas esse é outro símbolo, com outras discussões e significados — embora, como também é a bunda, com suas implicações estéticas e políticas.
fechar