Bossa finlandesa

por Guilherme Werneck

A banda Maria Gasolina esquenta Helsinki com suas versões de samba, tropicalismo e MPB

Existe uma esquina em Helsinki, próxima ao bairro do design, uma espécie de Jardins finlandês, com quatro pequenas grandes lojas de discos. Cada uma com sua especialidade. Estava na cidade para assistir a um fórum sobre o futuro da mobilidade, em num fim de tarde livre, no meu último dia na capital finlandesa, me deixei ficar algumas horas imóvel entre discos.

Nesse dia gelado e cheio de névoa na Finlândia, resolvi parar para me esquentar numa das melhores lojas de reggae e dub do mundo. Paraíso para quem gosta das ondas gordas do baixo, a Eronen é pequenina em tamanho e enorme no acervo. Tem CDs por lá, mas sua alma está nas prateleiras repletas de vinis novos e usados, de reggae, jazz, salsa e música brasileira.

Depois de fuçar um pouco, comecei a conversar com o dono da loja. Pekka Eronen é um viciado em reggae que sabe tudo do estilo. Para minha surpresa, ele já esteve algumas vezes em São Luis, no Maranhão, para conhecer a cena de reggae local. 

Como tenho uma regra de só comprar discos de artistas locais sempre que viajo para um país que não conheço, fiquei conversando com Pekka sobre reggae finlandês, ouvindo vários discos e separando alguns para trazer aqui para o Brasil. Quase no fim de nossa conversa, ele aparece com um compacto simples, daqueles de sete polegadas, de uma banda que toca música brasileira em finlandês. Pedi para ouvir e ele disse que eu teria de levar o disco, escutar no Brasil. Topei.

Não precisa dizer que o compacto com "Kapuusamba" - versão da banda para "Saudade Fez um Samba", do Carlos Lyra - de um lado e "Buribai", do Capitão América, do outro, foi revelador. Na mesma hora, fui atrás dos discos da banda, Se Jokin (2006) e Mä Olen Sun (2008) e, logo depois de ouvir e aprender um pouco da história do grupo, resolvi falar com eles.

A figura central do Maria Gasolina é Lissu Lehtimaja. Uma garota que descobriu a música brasileira ao morar no país adolescente, como aluna de intercâmbio. São dela as versões que a banda faz para músicas de Jorge Ben Jor, Chico Buarque, Caetano Veloso, Paralamas do Sucesso, Marcelo Camelo, só para citar alguns dos artistas brasileiros que tiveram suas músicas vertidas para o finlandês (Dá para ver as letras em finlandês no site da banda).

A partir desse primeiro contato com a música brasileira, Lissu passou a fazer suas versões e formou a banda, que hoje conta com ela (voz e trompete), Taneli Bruun (sax tenor e vocais), Kalle Jokinen (violão), Mikko Neimo (bateria), Matti Pekonen (baixo), Essi Pelkonen (sax alto), Aarne Riikonen (percussão) e Sanni Verkasalo (flauta e vocais).

Para destrinchar a história do Maria Gasolina, a bati um papo com Lassu por e-mail, em bom português, mas com um certo sotaque finlandês, claro.

Para começar, como vocês se conheceram?

Quando formei a primeira versão da banda, convidei uns colegas do colegial tocar comigo, mais uns vizinhos e velhos amigos, aí o resto veio através deles, amigos de infância etc.

De onde veio a paixão por música brasileira?

Eu fiz intercâmbio no Brasil em 1993-1994. Morava numa família brasileira e frequentava um colegial local. Além de aprender a língua portuguesa, fiquei conhecendo um pouquinho da cultura brasileira. E, é claro, com apenas 16 anos de idade, não fui uma super antropóloga ativa em todas as dimensões da sociedade brasileira, mas tinha um grande interesse pela música popular. Gravava fitas dos discos dos pais dos meus amigos e curtia muito a onda do tropicalismo, MPB, essas coisas.

"Às vezes parece que eu conheço a versão original da música tão bem de coração que acabo cantando palavras da língua finlandesa no ritmo da pronúncia brasileira sem perceber."

Uma coisa interessante é que vocês fazem versões do português para o finlandês. É muito difícil encaixar a prosódia da canção brasileira na sua língua natal?

Pois é, a língua finlandesa é bem diferente, as palavras são extremamente compridas. Em vez de preposições, nós colocamos mais e mais extensões no fim da palavra. Não tem artigos, não tem nem feminino nem masculino. A ordem das palavras dentro da frase é diferente... Que mais? Às vezes, independentemente do significado original de uma palavra, ela pode causar uma associação completamente diferente para o ouvinte. Ou pode ser que a palavra mais linda tenha um som feio em outra língua. E o que faz mais diferença quando você canta: o peso da palavra é sempre na primeira sílaba. Às vezes parece que eu conheço a versão original da música tão bem de cor que acabo cantando palavras finlandesas no ritmo da pronúncia brasileira sem perceber. Mas às vezes eu também mudo o ritmo da melodia um pouquinho pra encaixar melhor com a tradução finlandesa, depende. Antes disso procuro bem o vocabulário finlandês para achar algum jeito de passar a frase naturalmente no mesmo ritmo. Tem tantos fatores pra pensar quando se faz uma tradução. Mas como para mim a letra é mais importante, então eu até mudo a melodia ou o ritmo um pouquinho para eles encaixarem nas letras.

Mas é claro, às vezes a letra também tem que criar um compromisso. Uma canção é como se fosse um casamento de letra e música, os dois têm que dar mão para fazer um belo compromisso. Tem que valorizar e repensar qual é o fator, em cada música, que a faz ser como é. Entendeu? Tipo, tem algumas músicas onde o ambiente da letra é a coisa mais importante. Em outras é um certo ritmo das rimas, ou o jogo de palavras, ou o som da palavra, ou os detalhes, certas escolhas de palavra... É bem variado. E cada vez você tenho de pensar em qual é a coisa da qual eu não abro a mão nessa música. Mas tento ser tão fiel quanto possível com o texto original.

Quantos de vocês falam português?

Eu sou a única fluente. A Sanni, que toca flauta, deve saber um pouquinho porque ela fez capoeira. O saxofonista Taneli ficou meio ano no Rio e parece entende razoavemente bem, mas na verdade não sei o quanto ele fala.

"Tocam bossa em Sampa também e lá não tem praia [risos]"

Têm planos de vir ao Brasil?

É claro seria legal demais levar essa banda pro Brasil! Mas é meio complicado, é bem longe e bem caro, nós temos oito integrantes na banda e equipamento pesado... E não temos um selo grande por trás. Aliás, a gente se recusou a trabalhar para os outros. Então, quando começávamos as gravações do nosso segundo disco, fundamos a nossa própria empresa para produzir e lançar os nossos discos, tomar conta de faturas e impostos etc, etc. Por isso nossos recursos são bem modestos para planejar turnês... Mesmo assim já começamos a negociar a possibilidade de ir pro Brasil. Espero que dê tudo certo!

Maria gasolina é uma expressão para entendidos. Quem descobriu e como?

Foi tipo uma das primeiras palavras que aprendi em português [risos]... Eu tinha 16 anos e eles me ensinavam muita gíria pra bater papo com a galera.

Aliás, existem maria-gasolinas na Finlândia?

[Risos]

Não sei qual é a importância de ter um carro lá em cima onde tem tipo um habitante por cada 100 kilômetros... mas pelo menos aqui em Helsinki tem uma infrastrutura de transporte público tão legal que não é necessário ter um carro. A maioria dos meus companheiros nessa banda andam só de bicicleta e não são a favor de carros privados por razões ambientais. Nós escolhemos esse nome para a banda porque tinha que escolher um nome pra botar na capa de uma gravação, em que tinha uma versão meio punk do "Carro Velho", da Ivete Sangalo. De repente eu pensei nessa gíria e nós achamos um nome engraçado. Os finlandeses, claro, não souberam o que significava, mas era fácil de pronunciar, escrever e lembrar. E tinha um som exótico e humorístico até no ouvido finlandês. Muita gente aqui não entende que é o nome da banda, acham que meu nome mesmo... Às vezes vêm perguntar se eu sou a Maria Gasolina. A própria mesmo, hein? [risos]. Bom, tenho que admitir que tenho uma certa admiração por carros velhos, tipo fusquinhas e tal... E dirigia um Lada soviético 1200 L de 1979 mas acabei de vendê-lo e resolvi arrumar a minha bicicleta!

Como é fazer bossa e MPB com tão pouco sol na praia?

Tocam bossa em Sampa também e lá não tem praia [risos]. Falando sério, estilos musicais têm certas características culturais, mas atrás desses detalhes mais superficiais o que sobra são as emoções e essas coisas são universais. Pessoas riem, amam, sofrem e temem por todos os lado do planeta. Estou mais interessada em procurar as semelhanças do que as diferenças para criar entendimento entre pessoas de culturas diferentes. E falando sobre sol, não se esqueça que de verão aqui tem mais de 20 horas de sol por dia. E durante inverno é tão escuro que é bom ter gravado um pouquinho de sol num disco...
O som do Maria Gasolina é bem eclético, não fica só nos clássicos da bossa, toca de Carlos Lyra a Jorge Ben, passando por Novos Baianos.

Quem são seus artistas brasileiros preferidos?

É impossível dizer. Eu gosto de coisas bem variadas. Como já falei, tenho muita história em curtir os vanguardistas dos anos 70. Todos os tropicalistas, Tim Maia, Elis Regina, Raul Seixas, Secos e Molhados etc. etc Além deles, gosto de coisas dos anos 80 como do Blitz ou Legião urbana. E eu vejo o electro moderno como uma lógica continuidade desses. Isso seria o CSS, Bonde do Rolê ou Jumbo Elektro. Mas sou tão velha já que escuto até os velhos bambas como Elizete Cardoso, Noriel Vilela ou Noel Rosa.

A Finlândia tem uma tradição de jazz fortíssima, que vem dos anos 60 e 70, isso também contamina o Maria Gasolina?

O Aarne, que toca percussão na banda, vive escutando essas.

Além de coisas do Brasil, vocês tocam de Lily Allen a Femi Kuti. Qual é o próximo passo?

Há há! Umas coisas novas que entraram no nosso repertório esse ano, e que nos inspiraram muito, foram música malgasche do Erick Manana [malgasche quer dizer que vem de Madagascar] e post-punk glam-pop francês dos anos 80, Les Rita Mitsouko... Gostei!

"Durante inverno é tão escuro que é bom ter gravado um pouquinho de sol num disco..."

Como a música de vocês é recebida na Finlândia?

Bem. Não sei exatalmente porque mas, por alguma razão, nos nossos shows nem parece que é o mesmo povo que é caracterizado como tímido e rígido. Será porque nós dentro da nossa banda nos divertimos tanto tocando juntos? Ou será que o público já está bébado quando começamos? Ou será que é a alegria da música brasileira [que com um arranjo meio finlandês fica menos estranho para eles dançarem]? Ou será que a nossa banda ganhou fama de animar o povo tanto que eles já vêm decididos a enlouquecer e dançar feito malucos e nem iam perceber se fosse outra banda no palco? [risos] Sei lá, talvez seja uma combinação dessas razões.  Mas tenho que admitir que é impressionante como eles ficam liberados.

 

Ouça abaixo em streaming "Kaipuusamba", com Maria Gasolina:

 

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