por Henrique Goldman
Trip #237

Após 200 mil mortos na Síria, o Itamaraty ainda não chamou o representante de Bashar Al Assad


Após 200 mil mortos na Síria, o Itamaraty ainda não chamou o representante de Bashar Al Assad em Brasília para protestar contra o uso de armas químicas contra civis inocentes. Por que não?

O mesmo vento continuou a soprar misteriosamente esta manhã nos quatro cantos do mundo, atordoando adultos, velhos, crianças, plantas e animais – fazendo-se sentir talvez até em muitas estrelas, galáxias afora. Essa brisa insondável narra uma história tão complexa que confunde pensadores romenos e colunistas guatemaltecas. Ela, a brisa, sopra coisas díspares demais, como o separatismo escocês, a guerra na Ucrânia, a estiagem do sistema Cantareira, a epidemia de ebola na Libéria e a ascensão do Estado Islâmico no Iraque e na Síria – e todas as informações que se postam e tuítam e todos os detritos de plástico não degradáveis que afogam os mares.

Provavelmente só quando – e se – soprarem outros ventos, trazendo novos mistérios em seus uivos, caberá a historiadores, cientistas e fiéis de todas as crenças compreender o nexo oculto da presente ventania. Por enquanto, só um silêncio dolorido, preocupado e confuso com o mundo.

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Há quase dois meses o fogo cessou em Gaza e em Israel. Depois de mais de 2.200 mortes e muita destruição, o assunto desapareceu das pautas dos jornais, das redes sociais e das discussões nos jantares. Escrevo apelando para que se continue a denunciar, protestar e boicotar porque todas as causas do confl ito – o cerco a Gaza, a ocupação ilegal de territórios palestinos, o fundamentalismo cínico da liderança do Hamas e do governo israelense, arrogante e racista (ambos criminosos) – permanecem não resolvidas. Cedo ou tarde não vai se perder a oportunidade para se derramar mais sangue. Porque assim caminha a humanidade.

Porém, sem um pingo de cinismo, peço a quem atender ao meu apelo que não se esqueça também de denunciar tantos outros conflitos, alguns deles muito mais sanguinários, mas pouco mencionados na imprensa, quase nunca seguidos e debatidos.

SEM PREGUIÇA

Depois de mais de 200 mil mortos na Síria, o Itamaraty ainda não chamou o representante de Bashar al Assad em Brasília para protestar contra o uso de armas químicas contra civis inocentes. Por que não? Lê-se
pouquíssimos posts de internautas brasileiros no Facebook a respeito da guerra na Ucrânia – até agora mais de 3 mil mortos, com a promessa nefasta de se alastrar pelo Leste Europeu. Por que os artistas da Bienal não protestam contra Vladimir Putin? Enquanto isso, os tibetanos continuam brutalmente oprimidos por chineses. E os curdos, pelos turcos. E os muçulmanos na Caxemira, pela Índia. E os gays, em Uganda. A lista de confl itos ignorados é imensa. 

Há de se pensar que quem vos fala é mais um judeu não enxergando – e não querendo que se enxergue – as mazelas de Israel, alguém querendo melar o jogo, confundindo alhos e bugalhos em causa própria, para justifi car o injustifi cável. Muitos de meus irmãos judeus e israelenses realmente enxergam o confl ito com esse limite paranoico, egoísta e inaceitável. E nisso se igualam aos piores antissemitas. Mas, como acredito não ser esse o meu caso, peço então – sem a mão na cintura e sem o tom agressivo e calunioso que dominou o debate dos dois lados – que se responda às perguntas que fiz no parágrafo acima. 

Peço que a indignação contra o desrespeito à vida e à liberdade se estenda inclusive aos confl itos que não compreendemos porque temos preguiça para tudo o que é muito complicado e não nos toca diretamente. Quando deixarmos de ser tão preguiçosos, vamos enxergar que talvez o mundo inteiro mereça ser boicotado.

*Henrique Goldman, 53, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles

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