por Felipe Maia

O músico e produtor Mauricio Fleury fala de novo álbum, influências, mainstream e underground: “Se o jazz é uma pintura, o Bixiga 70 quer ser o grafitti”

"A gente, a gente, a gente". Enquanto fala, Mauricio Fleury insiste igual batuque com nosso equivalente à primeira pessoa do plural em português. Por curto que seja, o termo repetido diz um bocado sobre o Bixiga 70: um coletivo que faz música brasileira radicada em sonoridades negras e ramificada de abordagens nacionais.

“A gente quer refazer o caminho das misturas que a gente admira. Pode ser a mistura do Fela, do Gilberto Gil, da Nação Zumbi”, diz Fleury, guitarrista e tecladista do Bixiga 70 que lança, nesta quinta-feira (19), o seu segundo e também homônimo disco em São Paulo.

Neste LP os operários do som construíram vigorosos arranjos no périplo que vai às escolas africanas de improviso e retorna aos afrossambas e pontos de macumba. Dessa vez, contudo, a obra não foi feita em setores. “Nosso objetivo nesse disco era justamente essa tradução [do ao vivo]: todo mundo tocando junto”, afirma Fleury sobre o processo de gravação realizado no estúdio Traquitana, localizado no antigo bairro proletário do Bixiga.

O álbum estabelece a banda como uma das grandes propostas da música instrumental no país após celebradas turnês pelo Brasil e pela Europa, participações em coletâneas e elogios da crítica. Mas Fleury sabe que isso não é o suficiente.

Na conversa em que falou do novo trabalho do grupo, o músico também cutucou as relações escusas entre gravadoras e rádios, as dificuldades da criação artística no Brasil e a possibilidade de uma terceira via nos tempos atuais. “Se o jazz é uma pintura, o Bixiga 70 que ser o grafitti”, pontua.

Esse é o segundo álbum em dois anos e vocês gravaram ele em dois meses. No ano retrasado vocês também lançaram EP. O ritmo de gravação e composição de vocês parece ser rápido para uma big band. Como vocês lidam com isso? Ele foi gravado em uma semana, mas o tempo de trabalho entre masterização e gravação deu dois meses. Tem um tempo. E a gente ensaia toda semana desde que começou a banda e se reúne uma vez por semana pra ver os nosso objetivos e metas. A gente gosta muito de trabalhar! Tem trabalho pra caramba envolvido. Os artistas independentes podem ter imprensa do lado, mas sem trabalho isso não vai ajudar ninguém. A gente trabalha muito e muito sério. E a gente tem uma autocrítica muito forte: para nós poderia ser muito rápido que isso. A nossa ideia é fazer um novo disco ano que vem.

E porque vocês optaram por um outro disco homônimo à banda? Isso também está nesse fluxo. A gente acredita que o primeiro disco foi um cartão de de visita. E o segundo é uma afirmação do que é o Bixiga 70. A gente está num processo de construção de identidade da banda. Esse disco ainda está ajudando a definir o que é o Bixiga 70. A gente achou que não cabia um disco que abrisse outros horizontes. Enfim, abrir todo o leque do que é o Bixiga 70. Fora que discos dos anos 70 não tem nome. O Tim Maia é só Tim Maia até o Racional. Esse disco ainda é Bixiga 70.

Em uma outra entrevista o Cuca (sax barítono e flautim) disse que a ideia desse álbum era trazer a energia ao vivo para o disco. O que fica e o que se perde entre estúdio e palco? Essa foi a grande ideia do disco. Desde o momento que a gente entregou o primeiro disco, a gente começou a achar que ele não estava dando conta das apresentações ao vivo que estavam crescendo cada vez mais. Nosso objetivo nesse disco era justamente essa tradução: todo mundo tocando junto. Tentamos fazer sem ser ao vivo, sem ser nosso estúdio e não deu certo. Temos que gravar no Traquitana. E a gente mesmo que produziu junto com um engenheiro de som maravilhoso, o Ewaldo Luna. Ele ajudou a levantar o som. Também tem o Junior e o Betinho, que são nossos roadies. Mas teve várias sessões só com a banda no estúdio com o máximo de liberdade. Depois de três anos trabalhando juntos a gente já sabia o que queria. O Victor Rice, que entrou na produção no primeiro disco, entrou só na mixagem dessa vez e foi muito bom. Com certeza a sonoridade do disco deve-se muito ao Victor e à mixagem dele. Fizemos como achamos o que devia ser: teclado ligado no aplificador, metais tocando junto (mesmo com o som vazando). Fizemos a coisa mais livre possível, mas trazendo as referencias que a gente gosta.

Vocês costumam fazer versões. No primeiro álbum foi do Pedro Santos e agora Os Tincoãs. Como funciona esse processo, desde escolha, passando por arranjos e o produto final? Esse tipo de opção é natural. São coisas que a gente gosta. O Pedro Santos e Os Tincoãs foram pontos de partida da música brasileira pra gente. Também sou DJ e trabalho muito com música brasileira. Esse foi um dos focos da pesquisa pra mim. A gente redescobriu muita coisa. É aquela coisa: você dá a volta ao mundo pra chegar na sua casa. A gente trocou um monte de som e nesse disco também tinha uma lista de sons pra gente entrar num clima. O Pedro Santos e Os Tincoãs foram os primeiros artistas que a gente trocou ali nos primeiros e-mails da banda e o “Desengano da Vista” entrou rapidamente [no álbum]. Em Janeiro de 2011 a gente começou a tocar “Deixa a Gira Girar” dos Tincoãs. Eles foram uma inspiração para o Bixiga. É importante falar de música brasileira. A nossa África é brasileira. O que a gente faz em relação a África a gente sempre faz via Brasil. A música instrumental brasileira é sempre uma referência. A nossa ideia é fazer uma mistura que seja autentica pra nós. A nossa ideia não é imitar o Fela Kuti. A gente quer refazer o caminho das misturas que admiramos. Pode ser a mistura do Fela, do Gilberto Gil, do Nação Zumbi. Não queremos fingir que estamos na Nigéria nos anos 70. Isso seria longe da realidade. A gente cai muito nesse balaio de afrobeat e não achamos ruim. Tivemos a oportunidade de dividir palcos fora do Brasil com ídolos como Tony Allen e Soul Jazz Band. Queremos fazer uma musica instrumental dançante, interessante, como acreditamos que é, como foi criado. Isso é muito importante. Eu tive oportunidade de trocar essa ideia com o biógrafo do Fela. Falei pra ele: a gente não está fazendo pela África, a gente está fazendo pelo Brasil; aqui é "terceiro mundo" e a produção cultural é uma missão árdua. A ideia não é levantar uma bandeira que não seja a nossa, por isso o Bixiga chama Bixiga.

 

"A nossa ideia não é imitar o Fela Kuti. A gente quer refazer o caminho das misturas que admiramos. Pode ser a mistura do Fela, do Gilberto Gil, do Nação Zumbi. Não queremos fingir que estamos na Nigéria nos anos 70"

 

Em uma entrevista vocês mencionaram que as pessoas que relacionam o som de vocês somente ao afrobeat o fazem por falta de referências. Realmente, o som de vocês tem muito mais que influências do que Fela Kuti. Quais são as outras influências? Candomblé, Maracatu, a musica Malinké (da Guiné e do Mali). Foi de onde saiu o toque percussivo do Bixiga. O Décio e o Rômulo, resectivamente baterista e percussionista da banda, foram do grupo da Fanta Konatê [filha de Famoudou Konatê, grande percussionista guineense] e até hoje a gente volta pra isso. Temos um pouco essas três vertentes: a música do terreiro, a música dos maracatus e a musica Malinké. Tem uma música do Candeia muito emblemática pra gente que chama “Saudação a Toco Preto”. Ela chega a ser um afrobeat com percussão iorubá e metais funk. Tem música pra gente que é samba: Ocupai é um samba. Do samba a gente pode ir pro semba da Angola. A faixa Kalimba traz informação de carimbó, mas traz informação de suku, que é um ritmo do Mali, e tem uma clave Angolana. E fora isso a gente escuta muito jazz, especialmente o pessoal de sopro. Toco muito música latina: cumbia, salsa, música afrocolombiana. Quando a gente chegou com a musica dos Tincoãs metade da banda falou “é Cangira”, um ponto do candomblé. O próprio Pedro Santos: ele gravou com o Baden Powell e é uma influencia que todos nós carregamos. A gente vai atrás do que a gente quer pesquisar, mas a gente vai descobrindo que essas coisas estavam na gente.

Recentemente o Metá Metá ganhou um troféu no Prêmio Multishow. Alguns de vocês já fizeram parte do “Som Brasil”, programa da Globo dedicado a apresentações musicais. Como vocês vêem essa aproximação entre a sonoridade de vocês e o público maior? Isso é muito questionável. Eu acho que existe uma barreira que não está sendo falada. A questão é o jabá. Enquanto as gravadoras continuarem pagando para as rádios tocarem a música, não interessa se o Metá Metá ganhou prêmio. As pessoas falam do Metá Metá porque é um fenômeno musical. O que eles [as gravadoras] não conseguem é abafar o Metá Metá. Eles não estão gerando público porque não existe educação musical e não existe espaço em rádio. Ficamos felizes com o reconhecimento e com pessoas gostando. Mas enquanto a gente não quebrar a barreira das rádios não vai mudar nada. As rádios universitárias do Brasil tocam os mesmos artistas que fazem jabá. Para mim é claramente isso. As pessoas estão gostando, estão indo ao show, mas se a Globo der cinco minutos por semana pra gente não sei se vai mudar a cena. O rádio é muito mais intransponível. Tocamos em outros países e nas rádios nacionais e universitárias existe espaço para a música experimental - no sentido de atitude musical. Ninguém está mirando no publico que vai assistir a Globo. Se cada músico brasileiro saísse do país e visse como a musica brasileira é valorizada fora, talvez a gente evoluísse. Aqui no Brasil há uma relação muito complexa. O mercado independente sempre foi muito forte desde nos anos 80, mas tem que quebrar essa barreira que é muito forte. Conversei com o Thiago França [do Metá Metá] e a gente tem convicções parecidas. Não vai ser o Multishow que vai mudar a realidade musical do país.  

E como vocês enxergam o espaço da música instrumental no Brasil? É muito difícll circular porque os investidores não arriscam nos shows. Nas programações de festivais o Brasil é campeão em trazer banda velha. E no Brasil o cachê é superfaturado em relação a outros lugares. A ideia é uma terceira via entre o underground mais sujo e o mainstream que promete algo que não vai durar. A gente quer algo estável. Isso na música instrumental, artisticamente falando. O que a gente espera do Bixiga é quebrar uma lógica que estava na música que é uma parada individualista. Isso não interessa. A gente quer uma identidade coletiva. Isso é um desafio grande. Tem poucos paralelos nesse âmbito. Tem muita coisa que tem alguém encabeçando. A outra coisa é a questão dos improvisos e do elitismo. A música instrumental e o jazz são tidos como música muito refinada, assim como as artes plásticas: um tipo de trabalho mais hermético. Se o jazz é uma pintura, o Bixiga 70 que ser o grafitti. A gente quer algo que sobreviva em qualquer contexto, independente de ser instrumental. Algo que não seja uma coisa de museu. Nossa ideia é fazer um trabalho instrumental, mas que sobreviva em outros âmbitos.

 

"As pessoas estão gostando, estão indo ao show, mas se a Globo der cinco minutos por semana pra gente não sei se vai mudar a cena. O rádio é muito mais intransponível"

 

E junto do Metá Metá e de bandas como o Abayomi Afrobeat Orquestra e a Orquestra Rumpilezz vocês se sentem parte de uma cena de música instrumental africana no Brasil? Acho que é mortífero falar disso. Ao falar de uma cena você está fechando algo que é vivo. A gente faz parte de uma galera, dum grupo de pessoas que está interessado em músicas. A gente tem muito convívio com DJs bons, a galera que faz festa com vinil, o Dubversão. No Bixiga a gente tem quem toque com a trupe Chá de Boldo, tem o projeto Coisa Fina encabeçado pelo Daniel Nogueira, nosso saxofonista tenor. Eu toquei muito com o Emicida e também toco com o Rodrigo Campos e com o Thiago França. A coisa é muito maior que uma cena. Eu tenho uma admiração extrema pelo Letieres Leite. E o Abayomi tocou com a gente no primeiro show e a gente tocou com eles no Circo Voador na estreia do segundo disco. Hoje em dia os diálogos estão muito intensos. Se você juntar só os dez da banda tem mais que uma cena.

E o Bixiga 70 tem ganhado mais espaço na agenda de vocês com o sucesso? A banda foi tomando um espaço na nossa vida que foi inviabilizando outras coisas. Deixamos de fazer outras coisas porque os compromissos com o Bixiga são muitos e são prioridade pros dez. Estamos sempre trabalhando para ter um cachê legal, pagar bem a galera. A gente quer continuar fazendo música. Isso é liberdade pra gente.

Como será a turnê desse álbum? Alguma surpresa pode ser antecipada? A gente mudou pra caramba o flow do show. Vamos tocar poucas músicas do primeiro disco e tocar o disco novo na integra. E vamos tocar música nova que não está no segundo disco e que foi feita depois. Estamos virando a página. É um depuramento em todo o lance de performance. A ideia não foi romper com o primeiro: foi desenvolver e chegar um passo a frente disso.

A Europa está nos planos novamente? Com certeza. Estamos negociando o lançamento lá e com certeza a gente volta ano que vem. Temos bons contatos lá. Existem várias bandas que a gente viu lá e admirava e aos poucos a gente está se equiparando, se colocando aos lados desses caras e para gente é importante tocar na Europa por causa disso. A gente está em três ou quatro coletâneas fora do Brasil. Voltar à Europa é uma das metas e são metas que fazem a banda viver.

O segundo álbum é sempre uma provação para a banda em relação a crítica e público. Como vocês acham que se sairão dessa? Nunca passou pela nossa cabeça as expectativas dos outros para o disco. A gente está interessado nas nossas expectativas - que não são poucas. Graças a forças do universo que a gente pode sempre somar. Nao é todo emprego em que você pode imaginar onde você quer estar nos próximos cinco anos. O som do Bixiga 70 a gente quer fazer cada vez mais único. A gente é uma banda muito recente ainda e a gente se vê como criança nesse sentido. A gente tem muito o que aprender, o que crescer. A gente não acha que é a última bolacha do pacote, sabemos muito bem o espaço que ocupamos. Tem esses dois lados: a vontade intensa e até suntuosa - ir com dez caras pra Europa não é brincadeira - e também tem o interesse numa cena aqui. O interesse principal é aqui. Temos um festival nosso também: o Dia do Graffiti. Então são tantas demandas internas que se a galera vai fazer cara feia importa pouco. A gente está numa lacuna: uma banda instrumental que faz um som para a galera se divertir é uma coisa que estava faltando nos últimos tempos. A gente recebe elogios e isso move a gente pra caramba. Mas repito: sucesso é continuar trabalhando sem tantas dificuldades e problemas. Conseguir que as pessoas reservem trinta minutos do seu dia pra escutar nosso disco é maravilhoso.

E, falando em disco, você pode listar três discos que foram responsáveis pelo Bixiga 70? Krishnanda, do Pedro "Sorongo" Santos; Os Tincoãs, de 1973; e K Frimpong & His Cubanos Fiestas, de 1977.

Vai lá: Bixiga 70 (2013)
Download disponível e venda de CDs e vinis no www.bixiga70.com

Show de lançamento: 19 e 20 de setembro, quinta e sexta-feira
Sesc Pompeia - R. Clélia, 93 - Pompeia

Ouça o álbum na íntegra:

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