“Saudade daquilo que não se viveu” é a inspiração para a nossa Trip neste início de 2014
Imagens de antigamente e consumidores de hoje mantêm um diálogo cada vez mais intenso. A nostalgia se espalha nas roupas, nos filmes, nos discos que voltam ou imitam os de ontem, nos automóveis, nos anúncios. O passado é sempre feliz, dizem os psicólogos. Não há futuro no passado, condenam os sociólogos. O passado vende, contentam-se os industriais da novidade. Este é o ano das reprises, submetendo todos a uma poderosa lei que os obriga a sentir saudade.
As palavras do primeiro parágrafo foram extraídas da abertura de uma reportagem publicada há pouco mais de quatro décadas, em maio de 1973, na saudosa revista Realidade. O texto, chamado em destaque na capa e assinado por Geraldo Mayrink, de atualidade assustadora, abre uma pensata de nada menos que nove páginas, ilustrada com fartura de imagens, em tom crítico ao que o autor enxergava, já àquela época, como uma necessidade obsessiva de olharmos para trás na busca desesperada para dar sentido maior a um presente vazio e excessivamente carente de significado. Quase 41 anos depois, partes da reflexão de Mayrink poderiam ser perfeitamente cortadas e coladas em qualquer peça que tente explicar as centenas de sinais que apitam por toda parte indicando que na ponta da revolução tecnológica ultramoderna pode estar um pêndulo que inexoravelmente nos fará de alguma maneira voltar para o ponto de onde viemos.
Nos questionamentos sobre as formas de produzir, vender e consumir nossos alimentos, nas roupas que vestimos, no desenho das coisas, das casas, das bicicletas, dos carros, das pranchas de surf, das tatuagens, nas terapias, nas soluções para grandes problemas da humanidade, nas teorias econômicas, nas soluções urbanísticas ou educacionais, na literatura, no cinema. Difícil imaginar um campo da atividade humana onde não seja percebida hoje uma espécie de sutil e contínua invasão retrô, vintage, nostálgica, de revisita ao passado ou seja lá como vamos escolher chamá-la.
CUTBACK
Nick Carroll, nosso principal entrevistado desta edição, um dos mais respeitados jornalistas esportivos do mundo e um observador arguto da vida, acredita que o que nos leva a isso é um desapontamento evidente com o presente e uma grande descrença no futuro. Daí estaríamos, segundo ele, tentando atribuir uma graça, um brilho, uma aura mágica que de fato não havia no tempo que passou. Uma maneira interessante de elaborar o tema. Mas ele mesmo vive, por opção, uma vida que difere pouco da que viviam seus antepassados australianos na década de 50. Mora numa cidade pequena e pacata, população que se conta na casa dos milhares, com nível próximo de zero de poluição, trânsito inexistente, onde nada funciona depois das 8 da noite, anda-se bastante a pé, a natureza é exuberante e quase intocada e uma espécie de vibração vintage circula no ar. Consome seus alimentos comprados de produtores da redondeza e balanceia sua vida de forma a ter tempo livre para atividades ao ar livre, esportes e boa quantidade de tempo para estar com a mulher e as filhas. Num outro trecho da entrevista, refletindo sobre a comunidade de surf brasileira, o mesmo Nick dispara: “Será que os brasileiros reverenciam e celebram seus campeões dos anos 70, ou eles estão esquecidos numa espécie de vácuo? Sem conhecer, entender e celebrar o passado, não se tem nada”.
Uma reação aos níveis insuportáveis de pressão que a vida em grandes centros tem impingido às pessoas? A resposta à falência do modelo que apostava na acumulação e no consumo como soluções perfeitas para todas as angústias humanas? Uma tentativa de baixar a bola e de alimentar menos desejos e expectativas, valorizando o mais simples? Uma espécie de fenômeno cíclico inevitável, um tipo de modismo que se abate sobre o Ocidente a cada década e que serve mais do que tudo para reciclar os parâmetros de consumo e estimulá-lo?
Fazer essas perguntas num sobrevoo pelo curioso sentimento da “saudade daquilo que não se viveu” é a inspiração para a nossa Trip neste início de 2014.
Paulo Lima, editor
P.S. A Trip acaba de ser apontada como a revista mais inovadora do Brasil em pesquisa publicada pelo jornal Meio & Mensagem que avaliou todas as publicações editadas no país. Numa edição dedicada ao passado, um grande presente.
Dedicamos esta edição à memória de Eduardo Coutinho, alguém que empregou sua vida ao registro poético da realidade e que dominou a arte de capturar o passado, mantê-lo presente e entregá-lo a quem quiser sentir seu gosto em qualquer tempo.