André Caramuru: ”ser barrigudo hoje é quase sinônimo de pobreza”
Ao contrário do que foi no passado, ser barrigudo hoje é quase sinônimo de pobreza. Quem, senão os desprovidos de cultura e tempo livre, deixaria a pança crescer contra todas as leis da saúde e da beleza?
Estou deitado de lado, à noite, na cama, quase dormindo, quando aquele anjo que é a minha mulher apoia as mãos em mim, como quem vai fazer um carinho, e lasca: “Hahaha, você está com barriguinha”. Eu tomo um susto e desperto, indignado: “Barriga, eu? Que nada! Nunca tive barriga!”. Apesar de dizer a mim mesmo que não ligo muito para a estética pessoal, nesse momento percebi claramente que me preocupo sim, e até que bastante. Afinal, eu teria perdido o sono se não ligasse pra isso? E será que estou mesmo com barriguinha? Será que a vida sedentária dos últimos meses, com pouca atividade física e quase nenhum surf, está cobrando seu preço? E por que isso me incomoda tanto?
A verdade é que, em nossos dias, a palavra barriga é quase um palavrão. Mas ela já teve seu valor. Basta uma olhadela em imagens do passado (Brueghel, na Holanda do século 16; Debret, no Brasil do século 19; ou fotos do tempo de seus avós, na primeira metade do século 20) para concluir que barriga proeminente era sinal de nobreza e/ou
prosperidade. Quem, senão o rico, podia comer com fartura e não fazer nada, a ponto de deixar a barriga crescer, crescer e crescer? O curioso é que atualmente, no curto espaço de uma ou duas gerações, nós fomos para o extremo oposto. Ficamos entre pretender não ter barriga alguma (como se isso fosse possível) ou, na inevitabilidade de tê-la, que seja de tanquinho.
Barriga, hoje, exatamente ao contrário do que foi no passado, é quase sinônimo de pobreza, num sentido muito além do financeiro: quem, senão os desprovidos de cultura e tempo livre para escolher bem os alimentos e praticar atividades físicas, deixaria a barriga crescer, contra todas as leis da saúde e da beleza? Foi nos anos de expansão dos valores americanos, no pós-guerra, que cada vez mais gente passou a ter acesso, e em excesso, a alimentos que antes eram caros e difíceis de obter.
Ditadura do corpo
Nossa vida foi invadida por comida processada barata e generosa em sal, em açúcar, em gordura saturada, hidrogenada, trans... Com o cinema de Hollywood (que vendia homens e mulheres perfeitos) vieram o refrigerante, a pipoca e o salgadinho (que ajudavam a deixar homens e mulheres bastante imperfeitos). Em inúmeros casos, a mesma pessoa que passou fome nos anos de depressão e guerra, nas décadas de 1930 e 1940, foi ficando obesa depois dos anos 1950. Seus filhos e netos, privilegiados, puderam ficar gordos, diabéticos e cardiopatas sem nem mesmo ter experimentado a fome dos avós... E o que aconteceu foi que, enquanto uma classe social em ascensão se lambuzava com as gorduras e os açúcares (e ganhava peso), a outra, a de cima, aquela cujos avós tinham sido gordos, adotava a estética do corpo magro. Como são as classes altas que costumam formar opiniões, a pança logo se tornou uma coisa feia. O processo de desvalorização da barriga (e das demais gordurinhas) enquanto valor estético pode ser exemplificado por essa estatística: entre 1922 e 1999, as vencedoras do Miss América, nos Estados Unidos, ficaram em média 2% mais altas e 12% mais magras.
O fato é que, além de a questão de barriga proeminente se opor à ideia de vida saudável (pois são públicas e notórias todas as implicações médicas do assunto), a atual ditadura do corpo está transformando gordos e barrigudos em quase párias. Mesmo uma pequena barriguinha já passou a ser malvista. Sem querer exagerar para o outro lado, e levando em conta os recomendáveis cuidados com a saúde, é um absurdo impormos como corretos e desejáveis, para pessoas comuns como nós (e nossos namorados, namoradas, mulheres e maridos), os padrões físicos de quem vive do corpo, como atletas e modelos. E o pior é que a coisa pega mesmo. Enquanto eu escrevo esta coluna, não consigo evitar, fico me lembrando do que minha mulher me falou e, a cada 30 segundos, apalpo a minha barriga, pensando que preciso realmente voltar a fazer um abdominalzinho todos os dias...
*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br