Luiz Mendes diz que, na verdade, cada um elege seu próprio mestre e conta quem foi o dele
O que é um guru? Aquele asceta vestido de sári com um sinal na testa? Talvez para os indianos. Para nós, ocidentais criados em outra cultura e com outros valores, nossos mestres são outros, como Steve Jobs e Bill Gates, gurus da modernidade. Aquela conversa de que o guru aparece quando o discípulo está pronto aqui não dá certo. Quando o discípulo está a fim, ele vai atrás dos mestres com quem tem afinidade e empatia e aprende com eles.
No Ocidente, cada um elege o seu guru. Não exigimos santidade e muito menos moralidade. Há quem considere Maluf seu guru. Não me surpreenderia se surgissem discípulos do juiz Nicolau. No meu caso, o guru que promoveu a minha iniciação chamava-se Henrique Moreno, um assaltante de bancos dos mais periculosos, presidiário como eu e poeta de extrema sensibilidade.
Conheci Henrique na cela forte. Cadeia brava, dura e cruel. Estávamos ali por motivos absolutamente graves. Conversamos por cerca de quatro meses por meio do encanamento da privada, nosso nauseabundo "telefone". Completamente despojado, eu o vi arriscar a vida em defesa de pessoas que às vezes nem mereciam. Em determinada ocasião, ele me salvou, evitando que me matassem a facadas.
Digo sempre que os livros me salvaram, mas não foram bem os livros. Foram as pessoas que me trouxeram os livros. Foram as histórias dos livros que Henrique me contou, romanceadas por sua rica interpretação, que me despertaram a curiosidade para o livro. Eu o admirava e me tornei seu amigo de verdade. Por admirá-lo, queria ser igual a ele e, portanto, gostar do que ele gostava. Ler e desenvolver uma vontade de aprender foram consequências disso.
LUTA PELA LUCIDEZ
Foram cerca de dez anos de convivência na penitenciária do Estado. O que aprendi com Henrique e com outros que ele agregou ao nosso convívio é o que me tornou o que sou. Ele era o centro de um grupo de jovens condenados a muitas décadas de prisão. Eu tinha 21 anos e somava mais de um século de condenações. Ele tinha mais de dois séculos. Isso nos unia. Todos estavam para sair. Nós estávamos para ficar.
Líamos e comentávamos os mesmos livros - aqueles que caíam em nossas mãos. Criamos capacidade de pensar, criticar e discutir a partir das obras dos maiores pensadores da história. Estudávamos complexidades, pesquisávamos e buscávamos o saber. A luta era para sobrevivermos lúcidos, sensíveis e conscientes. Hoje isso é absolutamente claro para nós. Mas só Henrique era consciente disso. Somente ele enxergava nosso vir a ser. Nos olhava, dava um sorriso torto, enigmático e nos estimulava a procurar sempre mais.
O afeto, a generosidade e o cuidado que recebi desse amigo fizeram dele a pessoa mais importante de minha vida. Isso o tornou meu guru. Uma pena que nem ele nem os outros tiveram paciência de me esperar. Henrique saiu foragido. Foi morto em 23 de outubro de 1996, segundo relatos da imprensa, em um tiroteio com a polícia no interior paulista. Assim como o Franco, o Stanislau e todos os outros...
Imagino que não tenha encontrado a paz, assim como eu nunca a encontrei, mas um dia, não sei como, onde nem quando, companheiro, nos reencontraremos.
Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e 10 meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com