Andréia de Maio, morta há dez anos, foi a última cafetina-travesti romântica de São Paulo
Andréia de Maio foi a última cafetina-travesti romântica de São Paulo.
Mesmo temida, era mãezona das “meninas” do centrão. Morta há dez anos, foi personagem de um sem-número de boas histórias do underground paulistano.
Começo dos anos 80, Homo sapiens bombando na Marquês de Itu. Todo mundo ia à boate gay, de socialite a transex. Rua lotada com o povo no esquenta nos bares em frente, para um Miúra branco e desce uma travesti enorme de vestido curto, bolerinho de pele animal e um tchaco embaixo do braço. “Ela só tinha ido ver se estava tudo certo”, lembra a drag Marcelona, na época apenas Marcelo Ferrari, um adolescente de 16 anos. Quem desembarcava do esportivo importado era Andréia de Maio, a última cafetina, digamos, romântica da rua Amaral Gurgel, epicentro da prostituição de travestis em São Paulo há décadas. Andréia cobrava das meninas, era temida por traficantes, michês e trombadinhas e respeitada pela polícia. Sob seu comando, a região tinha ordem. E, apesar da fama de má e do tchaco, a xerife tinha instinto maternal pelas travestis mais novas. Não faltava playboy folgado tomando sopapos por sua ordem, e ela ia direto à delegacia resgatar protegidas.
“Travesti está sempre vestido de palhaço, é Carnaval o ano inteiro. Acaba sendo duplamente falso: altera seu corpo e identidade e transmite uma alegria impossível. Quem é feliz deitando com cinco homens por noite, apanhando da polícia e de boy e sendo rejeitado por toda a sociedade?” Dourar a pílula não fazia parte do estilo de Andréia. O ano agora é 1995, e Andréia fala sentada em uma banqueta alta na porta de sua boate, a Prohibidu’s, embaixo do Minhocão. Eu, então um estudante de jornalismo, não tinha a dimensão do poder daquela travesti quarentão e desleixado, que me contava histórias cavernosas do universo à nossa volta. Cabelo preso, olhar triste, voz firme, barba malfeita, o pequinês Al Capone sempre por ali e uma calça de moletom sob medida para acomodar suas coxas e bunda enormes, deformadas por mais de 10 l de silicone industrial – “um Fusca em cada perna”, dizia. Essa era a Andréia em seus últimos anos. “Ela cansou de se montar. Só muito de bom humor soltava o cabelo ou passava um batonzinho”, lembra a corpulenta Kaká di Poli, drag das antigas e amigona do peito de Andréia.
“Quem é feliz deitando com cinco homens por noite, apanhando da polícia e de boy?”
Cansada ela estava mesmo de muita coisa, inclusive do próprio corpo. Internou-se em uma clínica de cirurgia plástica em maio de 2000 e passou por uma delicada cirurgia de retirada do silicone. Era parte de sua preparação para deixar a noite. Na manhã seguinte à intervenção, sentiu-se muito mal e rapidamente morreu, aos 50 anos, possivelmente de embolia. Kaká se emociona lembrando do episódio. Ergue a voz e amaldiçoa o médico, mas logo conforma-se. “O sonho dela era tirar aquela bunda, e ela foi embora sem a bunda.”
Val Improviso
“Ela não era uma cafetina babadeira, do mal. Mas ninguém folgava com ela, michê, traficante, ladrãozinho... ninguém”, lembra Claudia Wonder, 55 anos, uma das mais respeitadas transexuais brasileiras. “Uma vez uma travestizinha roubou uma correntinha do meu pescoço na Val Improviso. Andréia ficou sabendo, subiu no palco e falou que, se não devolvessem na hora, quem pegou ia se ver com ela. Não deu 2 min a correntinha estava de volta na minha mão.” Val Improviso é a boate que Andréia de Maio abriu na década de 70 com Valdemir Tenório de Albuquerque, o Val, outra figura-chave do underground da época – alguns anos depois a dupla esteve à frente ainda da Val Show, também ali pelo centrão.
Mario Mendes, jornalista que viu tudo isso de perto, contextualiza: “Era um momento pós-revolução sexual e pré-Aids. Aquela coisa anos 70, desbunde, todo mundo experimentando tudo. A boate que as travestis iam era a Medieval, na Augusta, onde as pessoas bacanas também iam. Tinha ainda a Nostromundo, até hoje na Consolação, que era de uma travesti, a Condessa. E tinha a Val Improviso, inferninho que ficava embaixo do Minhocão, num prédio já demolido. Estava sempre em reforma, fio aparente, sem o menor luxo. A bebida mais barata era o drinque da casa, que parecia água de piscina e dava um fogo danado, até hoje não sei o que era aquilo. Era o primeiro dos after hours, antes do Love Story [boate no centro que há 18 anos nunca fecha antes das dez da manhã]. Fechava tudo e umas quatro da manhã ia todo mundo pro Val. Michê, puta, soldado do exército, travesti, gente da noite, da sociedade, o Chiquinho Scarpa...”.
Pedro de Lara e SBT
“O Brasil não tem emprego direito nem pra pai de família, quanto mais pra travesti. Falta tudo, mas tem delegacia de Costumes para as meninas apanharem e serem enquadradas por vadiagem. Isso é uma palhaçada!” Por conta de frases assim – essa também dita para o repórter aqui quando foca –, a voz de Andréia vez ou outra ecoava fora do gueto. Esteve várias vezes na TV, como no Programa livre de Serginho Groisman, então no SBT, onde bateu de frente com o ex-deputado conservador Afanásio Jazadji. Também frequentou a bancada do Show de calouros, na época dos “concursos de transformistas” que Sílvio Santos comandava nos sábados à tarde. Foi aí, aliás, que Andréia fez amizade com Pedro de Lara, única figura pública a comparecer a seu enterro, no qual discursou.
“Foi uma grande amiga, e era um líder carismático, respeitado, e também um empresário. Fiz com ela uma matéria clássica sobre travestis no Comando da madrugada. Ela me montou, e eu saí pra rua como uma travesti profissional”, relembra o apresentador Goulart de Andrade, 77 anos, hoje no SBT Repórter.
“Não tem emprego direito, mas tem delegacia pras meninas apanharem”
“O Prohibidu’s já era um lugar histórico na noite quando fui lá pela primeira vez”, conta a jornalista Érika Palomino, que, no dia seguinte à morte, assinou um elogiado obituário de Andréia na Folha de S.Paulo. Nele, dizia que o público da boate era composto de “bandidos, mocinhas, drags, semidrags, clubbers, DJs, travas e boys; descolados, famosos, herdeiros milionários e artistas”. Em minha percepção era isso mesmo, mas embalado em uma atmosfera pesada que, como muito poucas, segura o batido adjetivo underground. Érika descreveu noites memoráveis, como a que a fotógrafa Nan Goldin, habituée do trash nova-iorquino, baixou lá. “A Andréia tinha aquela coisa maternal, protetora. Por outro lado, tinha presença muito forte e uma tristeza no olhar.”
O ar triste tem certa razão de ser. Ernani nasceu em maio de 1950 e só encarou pedreira. Saiu de casa muito cedo e morou na rua por anos, na região do largo do Arouche. “Ela lavava carro, varria a rua, engraxava sapato, fazia o que desse”, conta Kaká di Poli. Depois, jovenzinho, tentou ser cantor e bailarino, chegou a cantar no Programa do Bolinha, mas a carreira não prosperou. Com 20 e poucos anos, virou Andréia de Maio, e aí a coisa melhorou. A família, contudo, ficou pra trás. “Ela vinha aqui em casa no Natal, no Dia das Mães, e falava muito pouco da família dela. Considerava minha mãe como a mãe dela também”, recorda a atriz e transformista veterana Angela Davis.
Cadáver na calçada
A morte também estava sempre por ali. Um ex-namorado lhe acertou seis tiros nos braços, mãos e pernas; no período em que foi “bombadeira” (aplicadora clandestina de silicone industrial), duas travestis morreram em suas mãos. “Não tem jeito, toda bombadeira tem óbito, é muito perigoso”, contemporiza Kaká; num dia em que a Vogue fazia um ensaio na Prohibidu’s, um tiroteio terminou com um morto na calçada. “Ela nem se abalou, disse que era acerto da polícia”, fala Marcelona. Quando a entrevistei, ficou de olhos marejados ao mostrar fotos antigas. Muitos amigos tinham morrido, assassinados ou de Aids. “Nem passo mais o vídeo de inauguração da casa, pois a cada vez tem uma a mais que a doença levou.”
Goulart de Andrade: “Ela até ajudou a me montar pra uma reportagem que eu fiz”
“Andréia era assustadora, muito grande, nunca foi bonita e sempre teve essa pinta de bandida, de satã. Era uma pessoa controversa, que vivia no submundo, e que, assim, tomava atitudes do submundo”, analisa Mario Mendes. Controversa é boa palavra. Andréia tinha, por exemplo, dois apartamentos lotados de beliches onde moravam travestis que lhe pagavam diárias. “É o jeito, quem aluga para travesti que se prostitui?”, questiona Claudia Wonder. Por outro lado, ajudava com Kombis de alimentos três instituições de caridade. Vivia naquele universo, mas se preservava. “Era careta, não bebia, não cheirava. No começo da Prohibidu’s, queria até ‘manter o respeito’ e nem deixava as bichas entrarem de saia muito curta... uma coisa meio louca”, diz Marcelona.
Tudo passado. Antes de nossa personagem, reinou Jaqueline Welch, a Jaqueline Blá-blá-blá, que andava pelas ruas com dois dobermans e foi achada morta num carro na praça Roosevelt. Depois de Andréia, assumiu o pedaço a amiga e também travesti Cris Negão, com outro estilo, muito violento. Terminou assassinada com tiros no rosto há três anos. Depois disso, não teve mais ninguém nessa linha cafetina-protetora. “Virou opção de marginal cafetinar. Ficam lá tirando dinheiro das travestis. Ameaçam, batem, cortam o cabelo, aleijam”, lamenta Claudia. “Muitas morrem cedo, assassinadas, e ninguém fala nada.” O último cafetão de que ela teve notícia era conhecido como Malhação. Saiu da cadeia e foi cafetinar, mas acabou morto rapidamente, há pouco tempo.
Depois de Andréia, assumiu Cris Negão, que tinha outro estilo, muito violento
História que nem de longe carrega o glamour trash-bandido de Andréia de Maio, que depois do Miúra branco lá do começo do texto teve outro carro, um Monza com seu nome gravado nos vidros fumês, como é comum fazer com o número do chassi. “Perguntei pra ela: ‘Pra que isso, Andréia?’”, conta Marcelona. “‘Pra vagabundo chegar perto, saber que o carro é meu e nem pensar em fazer gracinha.’ Falou bem assim, engraçada, muito machosa.”