por Henrique Goldman
Trip #201

Goldman: ”Tentando corrigir o erro cometido com o filho, meu avô me prometeu uma bike”

Com certeza tentando corrigir o erro cometido com o filho, meu avô também me prometeu uma bicicleta de presente de aniversário. Mas, de novo, o dia chegou e a tal da bicicleta não deu as caras

Toda família tem sua própria mitologia. São narrativas sagradas que explicam o universo familiar, sua gênese e sua forma presente. Como nossos pais cresceram, se encontraram e casaram? Em que contexto histórico-familiar fomos criados? Quais dos tios e avós são os heróis? E quem são os vilões? Essa memória coletiva familiar se perpetua em nossas vidas.

Cresci ouvindo as histórias da infância caipira do meu pai em Itajubá, Minas Gerais. Ele tinha uma égua chamada Guarany. Ele pescava traíra e tomava banho no rio Sapucaí, comia curau de milho no recreio e matava passarinho com estilingue. Mas acho que meu meu pai era um menino inseguro, pois todas essas histórias bucólicas tinham também um tom triste – terminavam sempre com punições injustas, decepções e muitas lágrimas. Não é à toa que, quando aos 7 anos li um romance pela primeira vez, Meu pé de laranja lima, passei a identificar meu pai com o Zezé, personagem principal do livro – um menino muito pobre e solitário cujo único amigo é uma árvore.

Segundo reza o mito, meu avô prometeu dar ao meu pai uma bicicleta de presente de aniversário. Por meses meu pai esperou ansiosamente, mas no dia do seu aniversário meu avô voltou para casa de mãos vazias. A bicicleta só chegou anos depois, e era uma bicicleta de segunda mão, detonada.

Com certeza tentando corrigir o erro cometido com o filho, meu avô também me prometeu uma bicicleta de presente de aniversário. Mas, de novo, o dia chegou e a tal da bicicleta não deu as caras. Meu pai ligou para meu avô furioso, inconformado com o trauma que se repetia. Mas logo veio a explicação: a bicicleta foi comprada. Se não foi entregue, a culpa era da Mesbla! Alguns dias depois, para alegria geral, eu já estava pilotando minha Caloi Dobramatic.

Bike do Caio
Tentando poupar o Caio, meu filho, de toda e qualquer frustração ciclística, meses antes do seu aniversário de 4 anos eu já estava obsessivamente pesquisando qual era o modelo mais bonito e mais indicado para sua idade. Quando minha mulher quis dar uma opinião a respeito da cor me irritei, me neguei a escutá-la. Surpreendi até a mim mesmo deixando o mito falar através da minha boca: bicicleta é assunto só de pai e filho! No dia do aniversário, uma Hotrock Specialized vermelha esperava pelo Caio ao lado de sua cama

Se não falhei no quesito bicicleta, vou com certeza falhar em outras áreas, travestindo o mito do amor imperfeito com outras formas. Passado também é destino. Cabe agora ao Caio e suas descendências processar essa herança como bem entender.

Quem quiser vê-lo andando de bicicleta pela primeira vez veja abaixo.

*Henrique Goldman, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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