por Paulo Lima
Trip #227

É sobre a dor e a delícia de estar só que fizemos esta edição da Trip

Nos anos 70, Natal ainda era uma cidade bem pequena. A Praia dos Artistas era frequentada por pouca gente e vivia linda, alviverde, se oferecendo para os felizardos que, por um motivo ou outro, podiam estar ali. Lá por 1978, 79, eu era um deles. Acordava cedo e ficava zanzando pelas areias, alternando quedas no mar a cada bocado de tempo, como se não houvesse amanhã. Viajar sozinho desde moleque foi um dos mais eficientes mecanismos de educação que encontrei. Felizmente, por ingenuidade ou convicção, ou talvez até por sentirem que havia de fato muito pouco a fazer para evitar, ao contrário da maioria dos pais de garotos de classe média daquela época, os meus não só permitiam, mas davam uma pequena ajuda para que eu pudesse largar São Paulo. Alguns trabalhos temporários me davam certa autonomia para pegar ônibus e ganhar a pista. Assim, com uma mochila verde exército de lona e alças de couro forradas com feltro cinza cor de ratazana, eu seguia só, litoral acima, rumo ao norte do Ceará, passando por lugares mágicos que iam de Saquarema a Paracuru, passando pela então virginal Praia do Francês nas Alagoas, Serrambi e Gaibu, perto do Recife, e pela supracitada Praia dos Artistas, primeira escala a caminho da quase desconhecida Praia da Pipa.

Mas, de volta a Natal, me lembro de um final de tarde bonito e melancólico em que, depois de passar mais um dia desfrutando da energia estranha e revigorante que habita a faixinha divisória entre continente e oceano, me senti profunda e silenciosamente solitário. Já tinha certa experiência em perambular sozinho e nunca senti nenhum desconforto com a situação. Ao contrário, era difícil estar melhor do que naqueles momentos, em cadeiras de ônibus, trens, pranchas de surf ou em andanças por ruas e praias sem ninguém para dividir os pensamentos ou para discutir decisões que precisassem ser tomadas. Tornou-se quase um vício e com o tempo fui descobrir que o processo era análogo aos que iogues e meditadores praticam. Uma técnica, mais rudimentar talvez, de assumir um certo controle sobre o turbilhão permanente de sons, ideias e pensamentos que nos roubam a mente durante todo o tempo acordado. Era como se aos poucos esse turbilhão fosse vendo seu volume ser abaixado até ir sumindo e ficar inaudível. E era exatamente ali que uma espécie diferente de calma e de livre pensar assumia o painel de controle de um radar quase vazio.

Ocorre que naquela tarde vazia (como diria a recém-rejuntada banda Ira!) ocorreu o inverso. O turbilhão de coisas para fazer, de tarefas a cumprir, de pequenos prazeres a perseguir e satisfazer deu lugar não a uma tela branca e leve, mas a uma pantalha gigantesca em 3-D, cheia de gatos angorás raivosos e de boitatás enfurecidos que em pouquíssimo tempo começaram a bailar um ritmo desencontrado, esganiçado e frenético. Tudo se transformou numa angústia tão funda quanto a camada mais inatingível do pré-sal. Importante lembrar que então, para o bem e para o mal, só o Agente 86 possuía instrumento de comunicação móvel. Estávamos numa espécie de mesozoico da tecnologia, tempo em que as pessoas ainda pediam para as avós e mães costurarem bolsinhas para carregar dinheiro dentro de cuecas, muito antes de políticos e funcionários públicos tornarem a prática mais popular.

Quando vi um orelhão da Telern (seria esse o nome da companhia telefônica do Rio Grande do Norte àquela altura?) tão solitário quanto eu, ambos vindos de encarar uma descarga de sol cavalar sobre o coco ao longo do dia, senti uma identificação absoluta e irresistível com o artefato. Não me lembro exatamente por que (provavelmente meus pais e meus poucos amigos acessíveis também estavam fora de São Paulo e do alcance do precaríssimo sistema de telefonia da época), mas restou-me tentar a sorte numa improvável ligação a cobrar direcionada à minha avó paterna. Uma senhorinha da maior gentileza e cheia de amor, já naquele tempo avançada nos anos, mas com quem eu não tinha contatos tão frequentes e cujos assuntos não iam muito além dos cardápios deliciosos que ela oferecia ad aeternum ou de reclamações acerca de algum vilão da novela das 8. Mesmo assim, girei o disco rezando para que, do outro lado, ela não só atendesse como dissesse sim ao pedido da telefonista de aceite da ligação e, claro, da conta, posto que a tal bolsinha de cueca encontrava-se já em fim de rota e na esquina do mapa nacional, quase tão vazia quanto meu pobre coração adolescente naquele momento. Como mágica, depois de alguns minutos de angústia, ouvi a voz da minha avó, rouca e feliz, apesar de surpresa com o inusitado da ligação. Por alguns minutos, mantivemos a mais amorosa e sem sentido das conversações. Eu tentando descrever algo que ela jamais entenderia e ela me contando o que estava preparando para o jantar e me dando o conselho que mais adorava dar: só gaste seu dinheiro com boas comidas.

Desliguei o telefone com a alma embrulhada no mais puro veludo cotelê, reconfortado e me sentindo forte. Cinco minutos de alento me fizeram entender que o fato de ficar dez dias sem falar com ninguém além de um balconista de padaria e do bom-dia ao porteiro de uma pousada (algo que hoje está na moda e se chama “retiros de silêncio” e pelo que se paga boas somas de dinheiro que não caberiam nas bolsinhas de cuecas – a não ser nas dos políticos) produz aprendizados riquíssimos e indeléveis, mas às vezes cobra seu preço.

É sobre isso, sobre a dor e a delícia de estar só, que fizemos a edição da Trip na qual você vai entrar agora.

Só.

Paulo Lima, editor

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