Arthur foi a Itabaianinha (SE) conferir como vivem os moradores da cidade dos anões
A luz do sol se filtra através do arvoredo. Todos os raios parecem apontar para o ginete, que cavalga com desenvoltura. Falta apenas uma moldura barroca para enquadrar a pintura. O cidadão se aproxima e, num movimento cadenciado, salta de supetão diante dos meus olhos. Com extrema habilidade, deixa o cavalo ao lado de um pé de mandacaru e me recebe com muito decoro. Estamos falando de um senhor de 85 anos cheio de vida e com a estatura de 1,20 m. Sim, isso mesmo, não é erro de digitação. “Nasci pequeno e nunca precisei de nada de ninguém. Sei resolver tudo sozinho com o meu tamanho. Corto no machado, trabalho com enxada, torro poste, monto cercas e ainda faço uma comida apetitosa”, conta seu José Francisco dos Santos, que todos chamam de seu Dodinha, com uma lucidez prodigiosa e uma polivalência para sobreviver que lembram o grande herói Dersu Uzala (1975), do cineasta japonês Akira Kurosawa.
A figura de seu Dodinha está longe de ser uma raridade naquele cenário. Conhecida como a cidade dos anões, Itabaianinha, encravada na região sul de Sergipe, a 120 km da capital, Aracaju, é o local que possui mais casos de nanismo no mundo. Vamos aos números: o Brasil tem em média um anão para 10 mil habitantes. Em Itabaianinha, com 80 anões entre seus 32 mil moradores, o índice é 25 vezes maior. Segundo o dr. Manuel Hermínio de Oliveira, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFSE) e especialista em endocrinologia genética, o índice sobe para 400 vezes a média nacional no povoado de Carretéis. Esses dados trouxeram para essas bandas pesquisadores e médicos da USP e da UFSE. Mas foram cientistas americanos da Universidade John Hopkins que primeiro detectaram a razão do problema: uma mutação genética no fator liberador do hormônio de crescimento (GH).
Com o isolamento geográfico que transforma vilarejos em espécies de ilhas e os casamentos consangüíneos (primos e primas, tios e sobrinhas) tão comuns em certas regiões do Nordeste brasileiro, o índice de nanismo explodiu em Itabaianinha, gerando um grupo de pessoas com altura entre 1,05 m e 1,35 m. No caso dos pequeninos da cidade, a deficiência do hormônio do crescimento ocorre quando a pessoa recebe um gene mutante tanto da mãe como do pai. A mutação genética não se manifesta quando se herda apenas um dos genes, mas a deficiência permanece incubada. Basta o cidadão se engraçar por uma prima distante não necessariamente baixinha para que ocorra a probabilidade de nascer um filho anão. O dr. Hermínio esclarece que a saga dos anões de Itabaianinha começou há oito gerações, isto é, há 250 anos.
“Nunca precisei de nada de ninguém. Resolvo tudo sozinho. Corto no machado, monto cercas e ainda faço uma comida apetitosa” - Seu Dodinha
Maroca, a matriarca
Nosso motorista e guia pela cidade é José Antonio Nascimento, o Toinho, que diz ser o anão mais alto da região, com seu 1,35 m. Toinho é taxista há muitos anos e está casado pela segunda vez. No primeiro casamento, sua mulher tinha 1,62 m, e eles tiveram três filhos “altos”. A história do segundo casório foi um acontecimento na cidade, com seus mais de mil convidados. Ele pediu a mão de dona Maria da Hora, outra miudinha de 1,22 m, professora por vocação e paixão. Desde então eles vivem esbanjando alegria e saúde.
Pergunto a Toinho onde poderíamos conhecer uma grande família de anões. Ele responde: “Vamos à casa de minha mãe”. Somos recebidos pela matriarca, Maria Idalina de Jesus, conhecida como dona Maroca. Ela nos oferece um café fresquinho e pede para sentarmos. Tem o tamanho de uma pessoa normal, com 1,68 m. Suas histórias são cativantes. Casou-se com Miguel Luis Nascimento, um primo distante com quase 1,90 m. Eles tiveram 20 filhos, 8 anões e 12 altos.
Dona Maroca incendeia a sala quando fala: “Estou fazendo 77 anos. Tenho 67 netos, 35 bisnetos e 2 tataranetos. Quando pari o primeiro filho reduzido já estava em minha quinta gravidez. Todo mundo achava bonitinho. Os meus filhos pequeninhos sempre foram mais inteligentes”. Evaldo, com 37 anos e 1,70 m, diz que sonhava em ser igual a Toinho. “Queria ser miudinho na infância e na adolescência.” Dona Maroca complementa: “Minha mãe era um pouquinho mais baixa do que eu, e meu avô, da parte do meu pai [que não era anão], tinha dois irmãos nanicos”. Uma prova viva dos encontros e desencontros genéticos dessa grande família itabaianense.
Zé miúdo, rei do supino
De volta ao tour pelas ruas de Itabaianinha, Toinho parou no bar Fla Lanche e chamou José Heraldo, mais conhecido como Zé Miúdo. Com um bigodinho mexicano e a camisa do Flamengo, Zé Miúdo contou vários causos que rolam no seu boteco. “Tenho 40 kg e 1,30 m, mas todo mundo me respeita. Ninguém perde a linha, o meu bar é o último a fechar na cidade. Outro dia um sujeito passou do limite. Peguei meu trabuco e fiz ele ficar calminho.” Zé Miúdo é vaidoso pra dedéu. Vive na academia e transformou-se no rei do supino. Puxa ferro diariamente e joga futebol com os gigantes. É casado com uma moça altinha e garante que continua cobiçado por muitas raparigas.
O bombado Zé Miúdo é exceção entre os anões de Itabaianinha. O baixo índice de massa muscular da maioria deles faz com que tarefas aparentemente suaves constituam esforços titânicos. Como uma das funções do hormônio de crescimento é queimar gorduras, sua ausência provoca aumento na taxa do colesterol no sangue, fator de risco para arteriosclerose e os males cardíacos. O dado positivo é a longevidade do grupo. Segundo as tabelas dos especialistas, a maioria tende a ultrapassar a barreira dos 90 anos.
Os anões do Arrocha
Na roça perto da cidade, fomos visitar a casa e a olaria dos irmãos Clécio e Cleidivan Tibúrcio de Jesus. O local que habitam é um oásis de tranqüilidade. Trabalham diariamente criando moringas, vasos e pratos de argila. A surpresa foi quando Cleidivan nos convidou para ir ao seu quarto. Com um olhar sorrateiro, sussurrou: “Agora você vai conhecer Os Anões do Arrocha”. Um enorme teclado dominava todo o espaço. Chamou o irmão e começaram a tocar, cantar e dançar alguns megahits das paradas nordestinas. Só faltou Mutantes no repertório. O maestro Caçulinha incorporava no pequeno Cleidivan em plena zona da mata. Ao final, apareceu sua namorada, Luziana, uma dengosa nativa de 1,60 m. Toinho interrompeu a cantoria para dizer que ainda faltava conhecer dona Pureza.
A casa de Josefa da Fonseca Dantas, a dona Pureza, é a mais linda de todos os pequeninos. O sofá, a cama, os quadros, todos os objetos encontram-se muito bem organizados. Ela está com 71 anos e tem um casal de filhos. Com sua voz fininha, ela foi contando alguns fragmentos de sua vida. “Conheci meu marido com 17 anos e fomos casados por 50 anos. Eu tinha 1,15 m, ele 1,60 m. Fui a primeira anãzinha a casar com gente grande. As pequeninas morriam de medo do risco do aborto ou de morrer no parto. Quebrei esse tabu. Era birutinha da silva. Resolvi não casar com outro anão para não espalhar mais reduzidos. Quando casei, foi um rebuliço. Todos os anões começaram a se casar. Na minha infância e adolescência tinha muita tristeza por não crescer. Chorava muito vendo os outros aumentando de tamanho, e eu ali do mesmo jeito. O meu alívio era ver outros miudinhos andando pelas ruas”, conta.
Segunda dona Pureza, a visão da sociedade sobre os anões de Itabaianinha é marcada por uma confusão. “A maioria acredita que somos iguais aos anões de circo, que são vítimas de problemas glandulares. Mas os anões de Itabaianinha são humanos reduzidos. Nossos membros e órgãos são proporcionais ao corpo.”
Mutantes sem novela
A mutação existe em Itabaianinha, mas é muito diferente da dos filmes e novelas de mutantes – em que existem os da Liga do Mal, querendo acabar com os humanos e dominar o mundo, e os da Liga do Bem, tentando se curar e salvar a humanidade. Nessas plagas, só existem pessoas querendo viver com dignidade e sem preconceito, em uma realidade marcada por grandes desafios e dificuldades.
Em 1996, uma equipe da Unidade de Endocrinologia Genética da USP iniciou um tratamento com injeções do medicamento Norditropin em crianças de Itabaianinha na faixa dos 6 aos 13 anos. Os resultados foram surpreendentes. Elas cresceram de 8 cm a 10 cm no período de um ano. Nos adultos, o remédio também evitou distúrbios do coração e no metabolismo das gorduras. “Todos crescem com o tratamento, mas não existe motivação entre eles, pois a baixa estatura é socialmente aceita na região”, destaca o dr. Hermínio.
Nas conversas com os anões da cidade, é possível notar que a auto-estima deles está fortalecida. Agora falta conquistar o reconhecimento da sociedade. “Não somos pequenos e coitados. Queremos mostrar a todos vocês não o nosso tamanho e sim nossas qualidades e nosso potencial”, diz Erica Luiza da Fonseca Lima, presidente da Associação do Crescimento Físico e Humano de Itabaianinha.
Tamanho não é documento
Parte do reconhecimento buscado pelos anões de Itabaianinha deve vir com o lançamento de dois documentários. Cidade de anões, concebido pela Mutante Filmes (www.mutantefilmes.com.br) e dirigido por Ariana Chediak e Cói Belluzzo, está em fase de finalização. Durante dez meses a dupla visitou a região várias vezes para registrar o dia-a-dia das versáteis criaturas. No início, os pequenos se sentiram desconfortáveis com as filmagens, porque alguns veículos de comunicação sempre retrataram os anões de forma infantilizada. Mas, durante esse período, eles conseguiram criar uma relação de confiança e amizade com a comunidade de anões.
O outro documentário é Terra de gigantes, curta-metragem de 7 min dirigido pela jornalista Ana Paula Teixeira, que acaba de ser lançado na internet (www.terradegigantes.com). O filme vai fundo na história de sete anões da cidade, alguns deles retratados em nossa reportagem. “Nossa intenção foi registrar a realidade de cada um desses personagens, que, apesar dos problemas humanos e das dificuldades financeiras, é cheia de encantos”, diz Ana Paula.