por Arthur Veríssimo
Trip #201

Arthur Veríssimo descobre como é viver sobre duas rodas

Na borda oeste da Ilha de Marajó fica um dos raríssimos lugares no mundo onde carros são proibidos. por lá, as bicicletas reinam soberanas. Nosso repórter excepcional foi até o delta do rio Amazonas para descobrir como é viver sobre duas rodas

 

Os bons ventos amazônicos e o movimento da maré indicavam que teríamos uma noite exuberante navegando o rio Amazonas. A pontualidade ribeirinha foi britânica, e a embarcação Fé em Deus soltou suas amarras precisamente às 23h, conforme estabelecido, do porto de Macapá, capital do Amapá. O barco se deslocava suavemente pelo delta do rio Amazonas, com passageiros em excesso e tecnobrega bombando no convés. Dezenas de pessoas se espremiam entre as redes procurando um cantinho para a travessia. Segundo o capitão, seriam cinco horas para vencer os 100 km até a pequena Afuá, cidade encravada em um ponto da borda oeste da imensa Ilha de Marajó. Durante um bom tempo fiquei observando a abóboda celestial com suas estrelas e constelações, e lá pelas tantas fui esticar o corpo numa rede. Quando peguei no sono senti o barco chacoalhando intensamente. Sonolento, olhei para os lados e captei imensa balbúrdia: pessoas choravam e clamavam por Jesus para apaziguar as águas e os ventos. A água espirrava pelo convés e laterais do Fé em Deus com força titânica. Não deu em nada. Da mesma forma como apareceu repentinamente a borrasca, um oceano de tranquilidade instalou-se no turbulento rio Amazonas. Exatamente às quatro da madrugada a embarcação ancorava no portinho de Afuá.

Caminhamos duas esquinas e fomos descansar no hotel Afuá. Cochilei por duas horinhas e saí para farejar, borbulhava de curiosidade. Afuá parece uma cidade cenográfica, ou então parada no tempo. As ruas e as casas são todas contruídas sobre pontes e palafitas de madeira, mantendo a cidade acima da várzea, já que Afuá é eternamente alagada pelas águas dos rios. Por lei municipal, veículos motorizados são proibidos de trafegar seus 8.373 km 2. Sendo assim, o meio de transporte único é a bicicleta e invencionices derivadas. "Nossa cidade é um laboratório em plena selva. Não existe poluição veicular, somos uma cidade oxigenada em todos os sentidos, aqui todo mundo circula de bicicleta e triciclos. O lazer, a atividade física e o trabalho estão conectados com a pedalada", declara nosso anfitrião, Raimundo Carlos, o Pisca, secretário da Cultura, Esporte e Lazer da cidade de 40 mil habitantes – e 15 mil bicicletas.

Nossa conversa foi amavelmente interrompida por um destacado cidadão afuense, o radialista, artista e inventor Raimundo do Socorro Souza Gonçalves, ou simplesmente Sarito. Homem cheio de ginga e talento, Sarito foi criador da primeira geração local de bicitáxis. "Resolvi construir um veículo em 1995 para passear com minha família. O primeiro protótipo era de madeira, tinha três rodas e capacidade para quatro pessoas. Foi uma revolução. Desde então o bicitáxi se aperfeiçoou e ganhou quatro rodas." Cheio de amor pra dar, Sarito nos levou à radio Afuá e nos colocou ao vivo. Fui entrevistado e o papo rolou solto.

Na pousada Barriga Cheia alugamos nossas bicicletas e saímos com a missão de percorrer a ciclovia que envolve toda a cidade. As ruas e as vias de acesso na sua maioria são estreitas, o ciclista tem que estar atento pois não existe proteção nas laterais das pistas e numa vacilada pode raspar, trombar com outro bólido e se estatelar no terreno alagado, 1 m abaixo. Todas as casas são de madeira, construídas em cima de palafitas. Segundo a prefeitura, são 25 km de ciclovias na área urbana de Afuá, sendo 60% de madeira e o restante de concreto.

Veículos motorizados são proibidos na cidade de 40 mil habitantes e 15 mil bicicletas. "Somos uma cidade oxigenada em todos os sentidos", diz Pisca, nosso anfitrião

Na exuberante vegetação que circunda Afuá, a típica floresta de várzea com muita virola, anani, macacaúba e palmeiras como buruti, babaçu, murumuru e o delicioso açaí. Paramos em uma vendinha e pedimos uma cuia de açaí, que por lá é servido quente, sem mel, granola ou açúcar. Para acompanhar oferecem farinha de tapioca, peixe ou camarão. O caldo é denso e o sabor é intenso. Bem estranho para quem não está habituado. Depois de algumas colheradas me senti como o marinheiro Popeye, cheio de energia e procurando minha Olivia.

Boto misterioso

Nas vias principais o movimento é intenso. Crianças indo para a escola, senhoras pedalando com suas compras e bicitáxis. O primeiro que surgiu foi a ambulância, que saía do hospital para um atendimento. O veículo possui quatro rodas, capota e maca. Em seguida, como uma aparição, surge de dentro do hospital o "boto misterioso" Mister Sarito. Tinindo inspiração, nos convida para conhecer outras quebradas de Afuá. Todos cumprimentam o mestre de cerimônias, principalmente as mulheres – o homem diz que no passado foi grande namorador, mas que hoje é apenas educado. Pelas ruas, não há semáforos ou guardas e o fluxo das magrelas é incessante. Na pedalada, Sarito nos leva a uma das três oficinas da cidade. Um emaranhado de rodas, pneus, aros e quadros emolduram a oficina do sehor Pipoca. O consertador nos explica que existe uma procura muito grande dos moradores para personalizar bicicletas e bicitáxis, veículos produzidos da junção de duas bicicletas, unidas por uma estrutura de aço. "Levamos umas quatro semanas para produzir a carroceria e os acessórios como volantes adaptados aos pedais, painéis, molas, porta-malas, para-choque, sistema para CD e DVD", explica Pipoca. Modelos assim oscilam entre R$ 3 mil e R$ 7 mil. Fiz um test drive com um bólido de quatro rodas e direção de carro. Os primeiros movimentos foram um sacrifício, mas depois peguei o jeito e circulei a trancos e barrancos pelas ruas estreitas.

Sarito parece um primo distante do Serguei. Metralha ditos populares e lendas locais como uma rádio ambulante, destila que em Afuá os moradores não vivem estressados, angustiados, depressivos ou com doenças respiratórias como nos grandes centros. "Em Afuá todo mundo pedala."

Na volta para o hotel o sol castigava, e a maioria dos ciclistas pedalava com sombrinhas e guarda-sóis agregados às magrelas. Nosso retorno para Marabá estava marcado para 21h. Renovados, retornamos à praça ao anoitecer e encontramos um veículo tunado cheio de estilo. De carroceria verde e com música explodindo, a caranga chamava a atenção. O dono, Oderley Monteiro Lobato, 28 anos, é comerciante em Afuá. Gastou R$ 5 mil para construir sua
joaninha verde amazônica e não parou por aí, está montando outro possante envenenado. O atual é equipado com DVD, direção de carro, molas, retrovisores, banco estofado, freio a mão e câmbio de três marchas. Oderley modestamente acrescenta que existem outros modelos mais invocados como a "Ferrari", o "Batmóvel" e o "Jipão".

Assim findava nossa estada naquela fronteira. Afuá é um laboratório amazônico em que a alternativa sustentável da bicicleta deu certo. Um conceito único de qualidade de vida e mobilidade urbana. Vai pedalar.

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