Escrever e vagabundear em São Paulo

por Julia Codo

A oficina Escrita Vagabunda, ministrada pela crítica literária Noemi Jaffe, convida os participantes a flanar por São Paulo

É sábado. Acordo mais cedo do que costumo acordar aos sábados e tomo um banho. Fico alguns minutos olhando para os meus pés, distraída com algum pensamento. Quando me dou conta, estou atrasada, me visto com pressa e saio. O encontro está marcado para às 9:45, na Estação Fradique Coutinho, em Pinheiros. Tento andar o mais rápido possível, como uma banana. 

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Há algum tempo, frequento cursos sobre literatura e oficinas de escritas em um local chamado Escrevedeira. Neste sábado, a atividade proposta pela escritora e professora Noemi Jaffe foi a oficina “Escrita Vagabunda”: a ideia é deixar a sala de aula e perambular pelas estações de metrô de São Paulo, sem destino, lendo e escrevendo textos sobre a cidade. Surgiu, então, a ideia de acompanhar o grupo a convite da Trip.

Das 10 às 17 horas, 16 pessoas circularam pela cidade sem destino definido, gastaram muito dinheiro com bilhetes de metrô, subiram e desceram várias vezes as escadas rolantes, fizeram baldeações, andaram pelas ruas, observaram indiscretamente pessoas desconhecidas, leram sentadas no chão encardido, escreveram. 

1. Estação Fradique Coutinho

Um grupo está reunido na entrada da estação. Algumas pessoas ainda não chegaram. Esperamos por elas e descemos as escadas. A Estação Fradique Coutinho tem um sistema de ventilação exagerado, é preciso enfrentar a ventania para chegar ao nível inferior. Quase em frente à bilheteria, paramos em círculo. Somos 15 mulheres e um homem. Ana, de Curitiba, veio a São Paulo especialmente para participar da oficina e volta para casa no fim do dia. Noemi faz uma breve introdução sobre a proposta: vamos passar o dia circulando pelo metrô e caminhando pelas ruas. 

A intenção é viver uma experiência real e física de errância, utilizar um meio de transporte funcional — de uma forma lúdica e não funcional —, aproveitar elementos do acaso e da surpresa para olhar a cidade de outro modo, como turistas acidentais em um destino inédito. “Quem precisar ir ao banheiro, avisa. Já está valendo”. 

“A intenção é viver uma experiência real e física de errância, utilizar um meio de transporte funcional — de uma forma lúdica e não funcional”
Julia Codo, repórter

No primeiro exercício, devemos escolher um personagem dentro do trem. Observá-lo, prestar atenção em todos os seus detalhes, conversar ou não com a pessoa, inventar a sua história. Escreveremos assim que descermos na estação.

É preciso descobrir nossa primeira parada e o fazemos deste modo: A Noemi diz “A” e continua enumerando as letras do alfabeto mentalmente. Alguém diz “stop” e ela revela a letra em que parou. No sorteio, tiramos “E”. Buscamos uma estação com esse nome. Eucaliptos, na linha Lilás. Ninguém se anima muito por causa das várias baldeações necessárias, então roubamos um pouco no jogo e sorteamos de novo. “L”. Vamos para a Luz, na linha Amarela mesmo. Estou segura de que foi o destino que quis a letra “L”, e não a “E”. 

2. Estação da Luz

No trem, nos espalhamos pelos vagões. Combinamos de descer na Luz e nos encontrar na plataforma. Bem na minha frente está um homem alto e musculoso. Decido observá-lo; não há muito mais o que observar, já que ele ocupa todo o meu campo de visão, e o vagão está cheio, é difícil se mover.

Descemos do trem e decidimos ir até o Jardim da Luz, onde nos sentamos e escrevemos uma história para os nossos personagens. Algumas pessoas leem seus textos. Tatiana escreveu sobre um homem com uma voz bonita que passou em um concurso do metrô para gravar avisos em inglês e acabou enlouquecendo por escutar a si mesmo tantas vezes nos vagões. Eliane leu a história de Macabeu, ex-usuário de drogas que cortou o cabelo, voltou a usar camisas sem mangas e agora lê a bíblia no metrô. Cândida mostra uma folha de papel manchada: “Vejam como o acaso se manifestou, um passarinho cagou no meu texto”. 

“Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução”
Walter Benjamin, filósofo

O exercício seguinte consiste em olhar para as pessoas que estão à nossa volta, prestar atenção na sensação de tempo que estamos vivendo no momento. Depois, se espalhar pelo parque, ler os textos de Cidade Invisíveis, de Italo Calvino, e inventar um lugar. 

O parque está cheio de moradores de rua e dos albergues da região, há também algumas prostitutas mais velhas, crianças correndo, homens tocando samba. Vejo um homem de avental que vende histórias em quadrinho de super-heróis, me aproximo dele. Ao seu lado, outro homem diz seu nome e idade e que Jesus me ama. Pergunta meu nome e minha idade. Um senhor com traços orientais faz joinha com o polegar; pergunto seu nome, ele não responde, novamente faz “joinha”. 

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Próximo ao ponto de encontro, há uma mesa com

um grupo de homens que bebem cachaça. Eles se reúnem ali todos os sábados. Todos querem me dizer o nome completo e a idade, talvez estejam habituados à presença de assistentes sociais. Manuel diz que posso adicioná-lo no Facebook. Querem saber o que estamos fazendo. Um deles me oferece um copo de 51, mas Manuel se apressa em dizer: “Ela não bebe essas coisas”, em seguida quer me mostrar o livro que está lendo: “Pequeno livro da conquista”. Osmar pede meu celular para fazer pesquisas no Google. Quer que eu procure seu nome completo e que abra sua página de Facebook para mostrar fotos da filha.

Já é meio-dia e nos sentamos em roda para ler os textos produzidos. Miriam lê sobre as árvores do jardim, com troncos grossos que adquirem a forma que o vento decide, onde há vãos preenchidos com as garrafas. Ivone escreveu sobre a fictícia Luzana, onde havia um pomar cujos frutos eram chamados de Diárides pelas crianças. Osmar e Manuel nos interrompem para pedir meu lápis emprestado, anotam algo em uma folha de papel. Alguém diz: “Nós somos o acaso deles”. 

3. Estação Liberdade

No percurso para a Liberdade, único destino pré-definido (para o almoço), devemos fazer mais um exercício: observar pessoas e criar um jogo próprio, inspirado no conto Manuscrito achado num bolso, de Julio Cortázar, algo do tipo: aposto que essa pessoa vai descer na próxima estação, aposto que vamos escutar três espirros até a Liberdade. Apostei que veria cinco pessoas vestidas em tom bordô. Minha projeção foi pessimista, contei sete pessoas com roupas dessa cor. 

Quando chegamos à estação, nos damos conta de que perdemos Lidia, Elza e Nicole. Elas não desceram. Aguardamos as meninas voltarem e fomos ao quilo barulhento da Liberdade, onde montamos pratos com sushis, frango xadrez e yakissoba. 

Sorteamos mais uma letra: “M”. Decidimos ir para a Mooca. Estação Bresser-Mooca.

4. Estação Bresser-Mooca

A linha Vermelha está muito cheia. Descemos na estação e ficamos um pouco confusos, sem saber para onde ir. Poucas pessoas conhecem a Mooca. É o bairro dos meus avós e do meu pai, mas faz tempo que não venho aqui. Passear pela cidade é uma forma de resgatar afetos. Lemos placas indicando o Museu da Imigração e as seguimos. No caminho, passamos por barracas de fruta, por vendedores ambulantes de calçados, pelo “Dogão da Bresser” e por ruas ainda marcadas pelos trilhos por onde o bonde passava. 

“Só porque/ erro/ encontro/ o que não se procura”
Orides Fontela, poeta

No museu, ficamos no jardim. Dá para descansar um pouco a vista e os ouvidos. E para escutar o som das palmeiras se movendo com o vento. Em São Paulo, a ausência de horizonte às vezes esgota nossas retinas. Lemos textos de Baudelaire e Walter Benjamin: “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução”. Falamos sobre o flâneur, um tipo de caminhante vadio, errante, explorador urbano das ruas da Paris do século XIX. 

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Discutimos os significados da palavra “errância”, do verbo “errar”, que com o tempo acabou adquirindo uma acepção negativa: “fazer algo com deficiência”, mas que, originalmente, significa perambular, vagar sem destino. “Só porque/ erro/ encontro/ o que não se procura”, diz um dos versos de um poema de Orides Fontela que lemos sentados em roda. Quando procuramos, temos uma finalidade; quando não procuramos, encontramos coisas o que não estávamos buscando, como o rapaz do “educativo” do museu. Algo semelhante ocorre com a palavra “vagabundo”, aquele que vagueia, anda sem destino, mas que a sociedade relaciona a alguém desocupado, que não produz. 

“A filosofia, o pensamento, a arte são, para muitos, sem utilidade”
Julia Codo, repórter

Lemos um fragmento de O partido das coisas, de Francis Ponge, no qual o autor descreve detalhadamente uma ostra. O flâneur tem mais tempo de olhar para as coisas e as vê pelo que são e não para o que servem. O último exercício consiste em escrever alguns fragmentos, inspirados na errância. A escrita fragmentada não tem exigência de começo, meio e fim, não tem hierarquia, é apenas diletantismo, pura flanação. 

16:10. Nos sentamos para ler mais textos e conversar sobre o que fizemos. Somos interrompidos pelo Waze, que liga sozinho dentro da bolsa de uma pessoa e diz: “Vamos pegar a segunda direita”.  

Terminamos falando sobre nossa experiência de resistência em um momento tão tenebroso do país. A filosofia, o pensamento, a arte são, para muitos, sem utilidade. Sobre nossa atividade de vivência do cotidiano, alguém diz: “não importa o que aconteça, isso ninguém pode nos tirar”. E para que serve isso mesmo? Para nada. Melhor assim.  

Vai lá: Oficina literária “Escrita vagabunda”, com Noemi Jaffe, dia 14 de setembro na Escrevedeira, em São Paulo.

Créditos

Imagem principal: Carol Ito

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