A coruja e a tropa de choque

A relação entre homens e animais atrás das grades, por Luiz Alberto Mendes

Eu era o centro de sua vida. Era chegar ao andar vindo do trabalho e lá da cela ela já guinchava alto, escandalosa. Pressentia-me. Entrava, o guarda trancava e ela vinha pulando para cima, toda feliz

Eram proibidos animais na prisão. Estávamos abaixo de qualquer nível; não nos era permitido conviver nem com animais ou plantas.

Jamais fui muito correto, lutei a vida toda contra o que fosse proibido. Creio que foi isso que me preservou da loucura, da alienação e até da morte. Dos três companheiros que foram presos comigo, um suicidou-se na prisão, outro acabou perdido em meio a mendigos e o último enlouqueceu de vez. Não se morre somente do corpo físico na prisão. Há mortes piores. Como a dos sentimentos (psicopatia), a da razão (loucura) e a mais lesiva de todas: a morte da dignidade (perder a vergonha na cara). Vivi guerra declarada contra os guardas das prisões por onde passei para ter minhas plantas e meus bichinhos.

Com o tempo fui sendo conhecido na prisão por esse cuidado com plantas e bichos. Os companheiros que trabalhavam no parque agrícola, quando encontravam filhotes de pássaros caídos do ninho ou plantas diferentes, me vendiam. Cuidava deles com o maior carinho. Dava água em conta-gotas, bolinhas de comida no bico e terra fértil. Quase sempre os filhotes sobreviviam e as plantas vicejavam.

Coruja podada
As maritacas vinham do Sul e nidificavam no bosque da penitenciária no fim do ano. Sempre restava algum filhote para mim. Uma vez apareceu um filhote de coruja do campanário, dessas grandes, com a perna quebrada. Só piava alto, quase fui obrigado a mandar embora porque os guardas da noite embaçavam com os guinchados dela. Comia carne crua. Companheiros que trabalhavam na cozinha traziam. Todos gostavam dela. Entalei, cuidei, ela ficou legal da perna e cresceu. Diziam que, de tão feia, ela ficava bonita. Só tinha pernas grossas e a cara enorme tomando todo o seu corpo. Eu a achava linda, ma-ra-vi-lho-sa! Seus enormes olhos amarelo-avermelhados como bolas de fogo, me focando o tempo todo. Eu era o centro de sua vida. Era chegar ao andar vindo do trabalho e lá da cela ela já guinchava alto, escandalosa. Pressentia-me. Entrava, o guarda trancava e ela vinha pulando para cima, toda feliz. Para mim, seus olhões me fitavam amorosos. Pulava pra cima e se instalava em minha perna, sem me ferir. Era preciso aparar suas garras, senão, sem querer, ela me machucava feio. Atrevo-me a dizer que ela me amava.

Cometi o pior dos crimes. O crime contra a confiança da amizade. Suas asas cresceram, ela foi enlouquecendo por voar. Debatia-se nas paredes da cela, machucava-se. Egoísta, em vez de lhe dar a liberdade que eu não tinha, atentei contra a natureza e podei as pontas de suas asas. Ela entristeceu, mas continuou o meu bichinho bonito.

Os “valentes” policiais militares do choque entraram em minha cela para uma revista de rotina e me colocaram para fora. Quando me permitiram voltar ela estava morta, esmagada embaixo da cama. Foi dolorido demais. Não pude sequer culpar os policiais, porque não conseguia entender como eles haviam feito aquilo, e com certeza aliviaria. A culpa me pertencia: caso não cortasse suas asas para tê-la para mim, ela estaria voando, longe daquela gente má e miserável. Livre como eu não era. Meu egoísmo a havia colocado em risco e me senti responsável por sua morte.

Criei outros pássaros, mas nunca mais os prendi. Eles ficavam um tempo e sempre se iam. Em prece silenciosa pedia que fossem livres por mim. De alguma maneira esses pássaros e plantas me ajudaram a conservar a sensibilidade e a confiança na vida. Era só olhá-los para perceber a magnitude da vida. Eles eram muito belos e amorosos, e a vida deles era toda cheia de sentidos para mim.

*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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