Uma Brasília sem Niemeyer, mas gerada pela mesma mania tecnocrática de grandeza
O ano é 1562 e a Europa está impressionada com a coragem dos portugueses – que, sitiados na cidade-fortaleza de Mazagão (do árabe Mazighan, “água do céu”), no litoral do Marrocos, derrotaram um exército árabe muitas vezes mais numeroso. Além dos 2.600 habitantes da cidade, havia o reforço de pouco mais de 20 mil soldados e cavaleiros enviados por Lisboa. Do lado marroquino, eram 120 mil. No fim, quando o exército do sultão Mohamed bateu em retirada, suas forças contavam 25 mil mortos. Do lado português, as vítimas fatais não passavam de 117, entre soldados e civis. Os mazaganenses eram, então, os heróis da civilização e da cristandade, em toda parte só se falava neles e até o papa mandou rezar uma missa em sua homenagem. Foi o primeiro grande teste, de inúmeros que viriam, para a inovadora fortaleza, construída em 1514 pelos melhores arquitetos italianos da época, como parte de um conjunto de fortificações no norte da África destinadas a servir de apoio aos navios portugueses que iam às Índias ou ao Brasil.
O ano é 1769 e Mazagão está, pela enésima vez, sitiada. É a última das praças portuguesas no norte da África, a única que jamais foi derrotada pelos mouros, a única cujas muralhas jamais caíram. Só que, agora, as coisas mudaram. O Portugal que se pretende iluminista, do Marquês de Pombal, só pensa no Brasil e seu ouro. Mazagão não tem mais utilidade e representa apenas custo. Não vale a pena gastar fortunas para, somente em nome da honra, mantê-la. Vai começar, então, a loucura de mudar uma cidade, inteira, de continente. Preocupado, isso sim, com as fronteiras brasileiras, o rei mandou empacotar os habitantes e seus pertences, embarcando tudo em 11 navios rumo ao Amapá, para, no meio da floresta amazônica, às margens do rio Mutuacá, fundar a Nova Mazagão. Elaborado pelo genovês Domingos Sambucetti, o projeto urbanístico da cidade, todo geométrico, se parece mais com as cidades da América espanhola do que com a confusão das cidades brasileiras. Só que, se a ideia era racional, a Amazônia nunca foi. Soldados acostumados aos combates no deserto marroquino agora vão tentar plantar arroz em terra ruim e lidar com cobras e mosquitos.
Lusitanas insanidades
O ano é 2009 e Mazagão é uma cidadezinha de 14 mil habitantes no Amapá. A 30 km de distância estão as ruínas da chamada Mazagão Velha, a cidade construída para abrigar os portugueses trazidos do Marrocos. Antes que o século 18 terminasse, uma série de epidemias matou ou provocou o êxodo da maior parte da população. Ficaram alguns escravos, cujos descendentes, hoje membros de uma comunidade quilombola, fazem anualmente a festa de São Tiago, relembrando as lutas entre cristãos e mouros no norte da África. No Marrocos, El Jadida (A Renascida) é um importante polo turístico, sendo a antiga cidadela portuguesa, cercada pelos nunca vencidos muros de pedra, a maior atração.
Transplantada do Marrocos para o Amapá pelos portugueses, Mazagão foi nosso primeiro delírio urbanístico, uma Brasília sem Niemeyer, mas gerada pela mesma mania tecnocrática de grandeza
Qual o significado de Mazagão? Ora, ela é nosso primeiro delírio urbanístico, nossa primeira Brasília, provando que loucura tecnocrática não tem época nem lugar para se manifestar, e que a veia lusitana, da qual somos alegres herdeiros, não conhece limites para os absurdos que consegue, com a inabalável convicção dos imprudentes, criar; ainda que por “criação” entenda-se às vezes plantar uma cidade, no meio do nada, obrigando um monte de gente que não teve nada a ver com aquilo a ir morar lá. E olha que na época de Mazagão eles tiveram que se virar sem o nosso unânime arquiteto, aquele que, além de cometer os templos da burocracia da cidade sem esquinas do planalto central, cortou fora a tampa de um morro à beira-mar, em Niterói, para nele fazer pousar um disco voador.