Trip foi até o Rio de Janeiro ver como a falência do governo joga uma das favelas mais famosas da cidade em um mar de contradições sociais
Na Cidade de Deus, a Loja da Paula vende tomadas, tupperwares, porta-retratos empoeirados, talheres, ventiladores e toda sorte de quinquilharia. Diferentemente do nome na fachada, quem comanda o balcão é a educadora Vera, uma professora que dá aulas de alfabetização para adultos na comunidade, cobrando R$ 80 ao mês por aluno. Apesar do valor módico, a empreitada não vai bem. Aos fins de semana, Vera, amiga da proprietária, tem que trabalhar como vendedora do estabelecimento para fechar o mês. "Antes, parecia que tinha melhorado tudo por aqui, mas agora a polícia e todos nós ficamos sem moral", reclama. "Então é normal que ninguém pague para estudar: preferem bancar o litrão da Brahma". Em uma travessa próxima dali, a dona de uma adega conta que precisou baixar os preços. "Ou a gente cobra barato, ou ninguém mais compra cerveja", explica.
Formada há 50 anos por famílias desabrigadas da zona sul do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus hoje é palco de contradições entre uma promessa de futuro e um passado que nunca foi embora.
Nos últimos anos, com os royalties do petróleo e eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas, o índice de desenvolvimento humano da CDD aumentou consideravelmente em menos de dez anos.
Em 2008, o presidente norte-americano, Barack Obama, desfilou pelas vielas do bairro. A judoca Rafaela Silva, nascida e criada na CDD, levou a medalha de ouro para o Brasil no campeonato mundial júnior. Uma cineasta envolvida no longa-metragem Cidade de Deus vê que, desde o longa de 2003, houve uma melhora considerável no nível de renda da região, com a aparição de um comércio agitado e a presença de turistas estrangeiros. ONGs ajudaram a formar atores, atletas e agentes comunitários. Motoristas de táxi, que antes se recusavam a dirigir até lá, agora disputam clientes com o Uber. "Hoje, taxistas vêm tranquilamente para esses lados", opina o taxista Márcio, morador da região.
Com a atual crise brasileira, que tem como um dos epicentros o governo estadual do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus vive uma mescla entre a curva ascendente e o perigo de ir ladeira abaixo. Julio Ludemir, escritor e fundador da Festa Literária Internacional das Periferias (Flupp), afirma que a "temperatura" aumentou nos últimos meses na região. "A falência do Estado é muito mais sensível na favela", explica.
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Só este mês várias ocorrências policiais foram registradas. Em um vídeo divulgado via WhatsApp no início de novembro, passageiros de um ônibus aparecem deitados em meio a um tiroteio em uma via de comércio agitado da região. Segundo a PMERJ, ninguém saiu ferido. No feriado da Proclamação da República, outra troca de tiros manteve moradores despertos durante toda a madrugada e início da manhã. Quatro dias após o feriado, mais um confronto armado durou horas a fio. No último domingo, 20/11, Dia da Consciência Negra, após quatro policiais militares morrerem com a queda de um helicóptero da PM na região, moradores da comunidade denunciaram o sumiço de sete jovens. Os corpos do rapazes foram encontrados por seus familiares em um terreno. Os dois casos serviram como estopim para o BOPE, a Polícia Militar e a Guarda Nacional ocuparem a Cidade de Deus - onde uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) opera desde 2009. Ainda não se sabe a causa da queda do helicóptero que realizava operações contra o tráfico que voltou a se firmar na CDD.
Mesmo sendo uma das primeiras comunidades cariocas a receber uma UPP, as forças policiais da CDD - e do Rio - não contam mais com o desfile bélico de outrora. Há relatos até de falta de papel para impressão de boletins de ocorrência em batalhões da cidade. O espaço nas favelas, tomado à base de tanques de guerra, foi aos poucos retomado por antigas facções, assaltos e troca de tiros frequentes.
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O clima de normalidade em um sábado à tarde, onde moradores jogam cartas em lanchonetes apinhadas de clientes, parece cada vez mais por um triz.
Segundo dados da Coordenadoria das UPPs, regiões pacificadas despencaram em número de homicídios, mortes causadas por policiais e roubos entre 2007 a 2014, porém a violência gerada pela guerra contra o tráfico (que apresentou alta de apreensões de drogas no mesmo período) nunca se dissipou. "Aqui aconteceu uma grande e elaborada maquiagem nos últimos anos", explica o educador social Sergio Leal, também conhecido com DJ Tr. Assim como muitos moradores no início da década de 90, Sergio apresentava seu endereço como a indicação de um bairro vizinho para se aventurar em entrevistas de empregos.
Com maior reconhecimento da comunidade no imaginário popular, ele abandonou o hábito e o preconceito com os moradores de antes parece ter diminuído, embora outros muros tenham se levantado. "A dificuldade não está só em conseguir um emprego, mas sobreviver em meio às forças militares e à corrupção", desabafa Tr. Segundo ele, o Estado implantou forças policiais sem se preocupar em alavancar espaços culturais ou garantir melhores serviços públicos. Aos 44 anos, Tr ainda presencia alunos da Cidade de Deus que vão à escola apenas em busca da merenda, ainda ausente em casa. "Para ser sincero, o que fizeram aqui foi implantar uma boa maquiagem, mas aí veio a ‘chuva’ e borrou tudo", diz.
Créditos
Imagem principal: Christophe Simon / AFP