10X Kelly Slater

por Vavá Ribeiro
Trip #195

Ele sagrou-se campeão mundial pela décima vez dias após a morte chocante do rival Andy Irons

Kelly Slater sagrou-se campeão mundial pela décima vez em Porto Rico, poucos dias após a morte chocante de seu rival Andy Irons. Amigo de Slats, o fotógrafo brasileiro Vavá Ribeiro estava lá para fazer um retrato íntimo desse momento épico.

Andy Irons is dead!... portas em automático… I need to sleep… Tandrilax, não esquece de tomar o Tandrilax pós-decolagem...

Shit! Mal tinha apertado os cintos para decolar e as vozes na minha cabeça já começavam a gritar. Porto Rico, meu destino final, sempre teve um valor emocional heavy weight na minha vida. Durante anos foi meu escape secreto de inverno. Geralmente em fevereiro, quando o frio e os dias curtos transformam Nova York em um lugar inóspito, eu fugia da depressão e linkava com um swell para alguns dias de vida tropical. Na volta, a neve era mais branca e as pessoas, mais toleráveis.

Para quem não conhece, a ilha é uma mistura de Havaí com Realengo. Sounds wrong, mas é tudo de bom. O surf é incrível se você souber aonde ir, a comida é excelente, o povo é simpático e o oceano, quente. O difícil seria, desta vez, em justaposição ao cenário, pintar tudo de cinza escuro e surfar de preto. Andy Irons morreu ontem, e aqui estava eu a caminho de Porto Rico para ver, viver na pele e comemorar o décimo título do Kelly Slater. Um dilema de difícil contraste…

Meus primeiros 35 minutos em Aguadilla foram suaves. Do aeroporto ao hotel, 7 min. Na recepção encontrei o entourage peso-pesado de Kelly: Sal Masekela, Mark Cunningham, Chris Jensen, Bruce Gilbert, Noah, Terry Hardy e Jesse Faen, meu companheiro de empreitadas chilenas. Jesse me passou uma prancha (5’7” twin fish), o resto da gangue me saudou com abraços, e Bruce falou:

– Let’s have a surf in silence!!!

Na praia de “Secrets”, uma esquerda corrida ao longo de um banco de areia, o vento maral fez a nossa sessão clássica não só pelas ondas, mas pelo silêncio humano que amplificava o zunido do vento nordeste forte, quase em um canto de despedida a Andy. Saí da água limpo. Leve. Logo ali decidi que essa viagem seria diferente. Minha missão seria conectar com o fluxo dos eventos e estar presente absorvendo com calma e profundidade as poucas coisas realmente significativas daquele momento histórico. Como extrair relevância do drama?


Clark Kent e Superman
Kelly só apareceu na manhã seguinte – como sempre, do nada, sem aviso. Assim, como um truque de super-herói, lá estava ele quando olhei para o lado, materializado do vapor da maresia, de pé em frente à mesa do café:

   – Wassup bru?!

Em tom meio quieto, veio me dar um abraço e saiu em silêncio, sem dizer mais nada. A coisa mais valiosa na vida de Kelly Slater, e que somente poucos sabem respeitar, é a privacidade. Naquele momento, com tensão pré-competição, título número dez em jogo e inteligência emocional requerida para digerir a morte do amigo rival, privacidade valia ouro. E da mesma maneira que surgira, num piscar de olhos, Kelly was gone. Invisível. Não é fácil ser Kelly Slater. Câmeras, fãs, obrigações, amigos, inimigos, família, namorada, ricos e famosos… todos-juntos-ao-mesmo-tempo-o-tempo-todo-todos-os-dias pedindo sua atenção.

Se houvesse uma maneira de ser Clark Kent pelo menos por 20 minutos, talvez Kelly pudesse errar, ser mal-educado, xingar no trânsito da marginal, tomar uma breja no baixo Gávea, ir ver o Mengão jogar no Maraca, acabar a noite na manhã de Copa, sair na Mangueira pintado de ouro e ainda assim…. incógnito.

Mas não, o que faz Kelly ser Kelly é o fato de que nem mesmo esse tipo de pensamento utópico passa por sua cabeça. Na verdade, a singularidade de Slater vem da ironia de que o surf o transformou em Superman e é lá, desafiando a gravidade nas ondas do oceano, que ele consegue fugir de todos e de tudo para voltar a ser Clark Kent again. Full circle, de onde tudo começa e para onde tudo volta… metaforicamente falando, como uma onda no mar. Dos quase dez anos que o conheço, ainda não consegui somar em palavras a multiplicidade da sua pessoa ou fazer o raio X de sua psiquê. Segundo Sal Masekela, deveríamos juntar por quatro semanas em algum lugar da Indonésia os maiores nomes da ciência moderna para estudarem o enigma. Biomecânicos, psiquiatras, matemáticos, físicos quânticos e pais de santo. O resultado? A ciência moderna avançaria dez anos-luz, e a raça humana viveria a primeira mudança de paradigma do século 21.

De volta a Porto Rico, a vibe, embora cinza, era pra cima. Setenta e duas horas depois da morte de Andy Irons, as pessoas já começavam a aceitar o fato e olhar pra frente. Kelly levou Andy na memória e no coração. Com caneta Pilot escreveu AI no bico da 5’9” pin tail e caiu na água para o campeonato.

Depois de passar pelo local Dylan Graves no round 3, e pelo brasileiro Adriano de Souza e por Jeremy Flores, das Ilhas Reunião, na bateria de três surfistas, Kelly was done for the day. Foi pro hotel com a namorada, Kalani, e seu fiel escudeiro e manager Belly. De lá não saiu mais. Nem pra comer. Corta para o dia seguinte.


Fim de uma era
Mark Cunningham é parte família, parte mentor de Kelly. Salva-vidas de Pipeline desde o reinado de Gerry Lopez, ele é surfista de peito, o humano mais parecido com o Aquaman. Cut back, 360 e floater… de peito, sem nada… Parece um boto-cor-de-rosa fazendo nado sincronizado. Naquele momento, no carro a caminho do evento, ele – hipersensibilizado, com as retinas molhadas – soltou:

   – This is it! Today it’s the end of an era.

Por um instante, no fundo da minha mente passaram-se 20 e tantos anos de imagens em um flash. De Martin Potter a John Florance, de Pipe Masters a Bay Watch, de Tavarua a Manhattan, de Pam a Gi, de hidrodinâmica a agronomia, de INXS a Jack Johnson, de lágrimas a lágrimas, de amigo a distante, de monoquilha a quarto quilhas e sem quilha, de tímido a porta-voz, de loiro a Kojak, de Waimea a wave pool, de pingue-pongue a golfe, de ovos com bacon a dieta de líquidos, de Caras a Time Magazine, de o mais jovem ao mais velho campeão, de wave fax a surfline, de Lakers a Mengão, de Luke Skywalker a Avatar, de filho a pai sem pai, de planeta Terra a espaço sideral (dizem que Kelly é um alien pelo formato da sua coluna vertebral quase de borracha), de rookie a dez vezes campeão mundial…. dez vezes campeão mundial… dez vezes campeão mundial!!!

Porra, pensando bem, Michael Jordan foi seis, Lance Armstrong, sete… Tiger Woods? Sei lá. E esses são considerados os maiores atletas da história? Well, amigos, Kelly estava prestes, naquele dia, a conquistar o number 10! Soma maior, camisa de pele, nota da Miss Universo, metade de Da Vinci…. Era apenas uma questão de horas, pois naquela manhã o algarismo 10 estava escrito nas estrelas, no verso do copo descartável, na etiqueta do biquíni da Manuela, no caroço da melancia digerida no café da manhã e no fundo do fundo dos olhos de Kelly Slater.

Enquanto o loosers round rolava, sem nenhum significado naquele momento, Kelly aplicou o truque de desaparecer, e o resto da gangue foi mais uma vez pra dentro da água. Kelly Slater x Adriano Mineirinho. Simplesmente a uma bateria, ou 35 minutos, para o grande feito histórico de dez vezes campeão mundial. Já no palanque todas as câmeras do mundo, todos os olhos presentes voltados para Kelly. Fiquei imaginando em que ele estaria pensando. Na filha, na mãe? No contrato milionário? Andy Irons? Mas, como de costume, Charles Bronson Slats pegou a prancha com o olhar no infinito, saiu andando em direção ao mar, meio matador, quase robótico, frio, untouched… E foi ali, naquele segundo, ao ver Adriano sentando na escada de olhos fechados em profunda concentração, que Kelly parou, debruçou-se, deu a mão para Adriano e, num olhar profundo de Clint Eastwood, mirou dentro da íris dos olhos do adversário e sorriu como quem diz:

   – This is it, let’s party kid!


Adriano, como que tocado por uma intervenção divina, decidiu participar do momento com leveza. Graças a ele, a festa começou mais cedo. Kelly somou nos dez primeiros minutos uns 18 e tantos pontos. Pronto! Can I have a beer, please?!

"Abraçado pela família e pelos amigos, Kelly disse: ‘Dedico esse momento à memória de Andy Irons. Se não fosse ele, não estaria aqui’"

Game over, party on! Kelly saiu da água nos braços do público chorando, sorrindo, chorando, gritando. Steven, seu irmão mais novo, o carregou nos ombros e ao passar por mim gritou “Vavá, get a pic of us!!!”. Fiz o clique já caindo; na sequência, fui pisoteado pela multidão e perdi uma lente na areia. Levantei feliz e fiquei apreciando a cara das pessoas próximas e de todos na praia. De volta a Kelly, agora abraçado pela família e pelos amigos, em lágrimas, perante a TV :

   – Eu dedico esse momento à memória de Andy Irons. Se não fosse ele, eu não estaria aqui.

Kamooooommm!!!! Porto Rico entrou em erupção… Lágrimas e sorrisos em homenagem a Andy Irons, gritos de glória e euforia saudavam Kelly, a praia inteira em um momento de êxtase, yin e yang, life and death e, por quase milagre, até um arco-íris apareceu no céu. Segundos depois Kelly foi raptado para a sala de imprensa. E mais uma vez, como havia decidido no primeiro dia, resolvemos fugir da massa e voltar para dentro d’água. Como num ritual de Iemanjá, para purificar a alma e preparar a mente zen para a próxima etapa daquele dia.

A final do campeonato não importava. Nem mesmo para a história. Nada iria superar o momento X10. Tipo: que tal ver o show do Capital Inicial logo após ter visto o do Radiohead? Pois bem, vimos os cinco minutos finais por obrigação. Kelly ganhou o campeonato. Na verdade foi legal estar ali vendo ele embrulhar tudo pra presente. Afinal, it’s a Kelly’s world, we just happen to live in it.

Na parte que me toca, eu contei 13,5 rum and Coke das 20h30 até o café da manhã servido a bordo rumo a Nova York. Todo mundo no Baccardi Celebration Rebolation. Enquanto isso, Kelly tomando suco de limão e soda de canudinho. Pensando bem, assim é Kelly Slater, sempre achando a própria maneira de absorver o mundo à sua volta com profundidade e sabedoria Jedi. A noite acabou no dia seguinte com mar de 10 pés perfeito. E, enquanto o mundo do surf dormia sonhando com o patrocínio do Engov, Kelly passava parafina para ir surfar… com Clark Kent e Andy Irons, sozinho.

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