Meirelles: o homem pela alimentação

por José Carlos Meirelles

O sertanista, em suas andanças pelo alto Envira, descobriu uma nova forma de observar antropologicamente o ser humano: por meio do ciclo alimentar – da colheita e da caça, ao consumo.

Alem de inventar causos, dei de inventar palavras. Grastronteroantropológico, de gastroenteroantropologia, um ramo novo (sei não se já não existe, com outro nome) da antropologia que pretende estudar os homens do ponto de vista do estômago. Bestagens...             

No auge do verão por estas bandas, quando os tracajás e tartarugas depositam seus ovos nas praias, curimatãs, matrinchãs, pirapitingas, pacus, piaus, peruacas, capararis, surubins e outros peixes menos cotados, ficam à vista pela translucidez das águas do rio e dos igarapés.

É tempo de sair das malocas, pescar e caçar.   Queixadas e caititus vêm para os baixos chafurdar no restinho de igapós sem água, mas com a terra úmida- boa de fuçar- veados e antas, depois das 10 da manhã, se refugiam dentro dos igarapés para fugir dos enxames de mutucas.

A calha do Envira e se seus tributários se transformam em uma enorme concentração de alimentos. Isso sem falar nas embiaras de pena – mutuns, jacus, cujubins e toda qualidade de inambu – além de matar a sede, passam o dia comendo fruta de louro, pé de pau preguiçoso no crescer, por isso nascido nas margens dos rios e igarapés, pendendo para as praias a procura de sol. Suas frutas caem no agosto para aumentar a concentração de caça.

Com as sucursais do Supermercado da Mata, localizadas nos baixos, oferecendo alimentação farta, fácil, gorda, (sem gordura trans) e sem agrotóxicos, tudo na promoção de verão, fazem com que os parentes brabos se desloquem de suas malocas, no centro da mata, agora meio desabitada, para os baixos.

Vêm com suas famílias. Duas ou três em cada trecho, pois coisa que brabo não gosta é de fila no caixa!

O velho Envira, e seus tributários, no inverno, destabocam das terras altas com a pressa de quem quer chegar à calmaria da planície amazônica, seu destino final. Desmancha barrancos, derruba árvores, mói e remói, destrói e constrói e transporta matéria orgânica. Deposita tudo nas margens, criando praias e baixos altamente férteis.

A gameleira e os louros sugaram tudo que precisam da terra gorda. E produzem uma quantidade enorme de frutos, que maduros, caem. É a promoção de verão. Os macacos comem uma fruta de gameleira e derrubam dez. Os jacus, cujubins, papagaios, tucanos e a maioria dos avoantes fazem o mesmo com as frutas de louro. Uma pirapitinga come a fruta de gameleira e depois é flechada por um brabo. A anta, barriga cheia de gameleira, vai tomar banho no igarapé, na “amanhecênça” do dia. Flecha nela. Moquém grande no acampamento.

Pacús, piaus, matrinchãs, mandis apreciam as frutas de louro e as de gameleira que caíram na água. As curimatãs dispensam frutas e insetos. Comem aquele lodinho verde que se cria nos rasos dos igarapés e ao final todo mundo acumula banha. E tome flecha! E tome moquém de peixe gordo!

É aquela felicidade no estômago no depois de comer, que desconfio ser, tirante a após sexo, uma das poucas autênticas que sentimos.

Os meninos treinam flechar em pequenos bodós, piabas, sabarús e matupiris. As meninas cuidam de moquém, aprendem a fazer abano de folha de jarina, fazem suas malocas de areia na praia.  Brincando, sem pecados e medos, descobrem o sexo. Pais e mães, felizes e de barriga cheia, fazem outros meninos e meninas que serão paridos no fim do inverno.

É um cio geral do verão. Onças fêmeas no cio esturram. Cinco ou seis machos de anta fazem uma zoada danada nos baixos atrás de uma fêmea, veados, macacos, quatipurus, e todo tipo de vivente, de bucho cheio, viça.

A causa primordial de toda esta explosão de vida é a troca farta de proteína. A busca incansável do estômago pela felicidade. E quando ele está feliz, as outras felicidades, ninfas fugazes e ariscas, pousam em nossos sonhos.

No início de setembro o céu fica casmurro, o vento sul para de soprar, as nuvens se formam e as noites claras do verão de sons da terra são cortadas pelos primeiros clarões dos relâmpagos. Os sons do céu.

Tempo da bicharada do chão rumar para as terras firmes. As gameleiras e louros, com pouca folha e sem frutos aguardam o novo ciclo que se inicia. Os baixos secos tem pouca comida a oferecer. Bandos de toda nação de macacos, embiaras de pena, caças grandes, pegam o lombo das terras firmes que dividem as águas e rumam para o centro da mata.

Os peixes ovados, com reserva de proteína sobrando, se amufambam nos balseiros. Difíceis de flechar.

Os parentes brabos arrumam os paneiros e voltam às malocas. Com saudade da banana, da macaxeira, do milho, enfim do roçado velho. E com a urgência de tocar fogo no novo, antes que as chuvas cheguem. Encoivarar roçado que não queimou é tarefa que ninguém gosta.

Nos paneiros vão peixes e caças moqueadas para os que ficaram zelando das malocas. Vão também, empaneiradas na memória, as histórias do verão que termina.

O inverno chegou.  Com ele um novo tempo. Tá todo mundo unido de novo na maloca. As filiais do Supermercado da Mata dos baixos estão fechadas prá balanço. As filiais da terra firme abrem suas portas.

Mas isso é outra história...

   

José Carlos Meirelles foi homenageado pelo Trip Transformadores 2009. Assista aqui a sua história. 
Acompanhe semanalmente textos de grandes pensadores da sociedade brasileira, que já pisaram no palco do Trip Transformadores.

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