Transformadores em ação

por Cirilo Dias

Na última semana, São Paulo sofreu uma transformação discreta

Na última semana,  São Paulo sofreu uma transformação discreta, mas com efeitos devastadores. Parece exagero, mas quem presenciou a 2a. edição do  Antídoto pôde vislumbrar a força da organização dos agentes culturais que atuam discretamente em áreas onde todos evitam estar.

O projeto Antídoto – Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito foi realizado em parceria com o Grupo Cultural AfroReggae, do Rio de Janeiro, e trouxe em sua programação seminários com personalidades atuantes em zonas de conflito como José Júnior (fundador do Grupo Cultural AfroReggae), Regina Casé, Tia Dag, MV Bill, Gabriela Leite (fundadora da ONG Davida e da grife Daspu), Damian Platt (ex-funcionário da Anistia Internacional de Londres) e Hugo Acero (ex-secretário de Segurança e Convivência da prefeitura de Bogotá, Colômbia).

Para amenizar o clima de discussão na Sala Itaú Cultural, três dias de shows com AfroReggae, Paula Lima e Rappin´Hood, recebendo convidados ilustres. No primeiro dia, quinta-feira, apenas os anfitriões, já na sexta-feira, os shows mostraram o quão explícito é o abismo cultural que esse projeto tenta combater. Duas sessões, uma para o público geral e outra para os convidados. Na primeira, muita animação, espontaneidade e reciprocidade entre público e músicos. Apenas o AfroReggae no palco já era suficiente para garantir a animação, mas a presença de Paula Lima, Rappin´Hood, Arlindo Cruz e do colombiano Cesar Lopez com sua escopetarra (uma guitarra feita com um fuzil AK-47) levou os presentes ao êxtase. 

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Já a segunda sessão, apenas para convidados, foi o retrato fiel de como a parcela mais abastada da população lida com problemas sociais: muita frieza e indiferença. O sábado terminou de preparar o espírito dos presentes para encarar a semana de seminários. Colocar AfroReggae e Olodum no mesmo palco providenciou o escudo necessário para que a banda 190, formada pela PM do Rio de Janeiro, ganhasse aplausos tímidos em vez de vaias.

A “barreira entre polícia e periferia começou a ser quebrada”, sentenciou Rappin´Hood no palco.

Os seminários que deram continuidade ao Antídoto foram pautados pelos temas “As contradições dos conflitos e da cultura”, “Cotidiano: relatos e experiências”, “O preconceito cultural leva ao conflito?”, “A juventude não conhece muros” e “Religião, cultura e conflito”. Foi na mesa do preconceito cultural o ponto alto do evento. A presença de Gabriela Leite, ex-prostituta e criadora da ONG DaVida e da grife Daspu, serviu para desinibir a outra convidada, a apresentadora Regina Casé. Ao tomar posse do microfone, Gabriela já deu a intimada geral “odeio palavras politicamente corretas, como prostituta, mulher da vida, profissional do sexo. Nós somos putas mesmo”, e salientou sua luta em desenraizar esse preconceito implícito que prefere maquiar assuntos e palavras. “Antigamente os jornais colocavam p... Ultimamente eu tenho visto a palavra inteira [puta]. Então, alguma coisa está mudando, e, quando a linguagem começa a mudar, eu tenho esperança que muita coisa possa mudar também.” E, pra finalizar, a resposta seca e direta para uma garotinha que ousou perguntar a razão de Gabriela ter escolhido a vida de puta.

“Não tem pessoas que escolhem ser jornalistas e médicos porque gostam da profissão? Então, eu escolhi ser puta porque eu gosto de ser puta.”

Preparado o terreno, foi a vez de Regina Casé destilar sua opinião, “quem faz cultura popular é aquele cara legalzão, que gosta de pobre, comunista, que faz teatro com bandeirinha de São João. E não é isso, porra, eu gosto de galeria de arte, assim como gosto do funk, do graffiti. Não acho que são melhores, que são incríveis, eu acho que isso é um todo, e eu gosto de viver com todo mundo junto e misturado. Não acho que exista outra possibilidade de ser feliz”. Muito assédio e risadas depois, Regina falou da sensação de ver os transformadores em ação ali no palco. “Sempre teve muita gente legal perdida, uma ali no cantinho fazendo um trabalho maneiro, outra ali, e agora que todos esses trabalhos estão ganhando força, e que todos se encontram aqui, num lugar público, você acaba conhecendo pessoas e descobrindo atalhos para ir mais fundo no seu trabalho, se transformando e transformando os outros.” O saldo final de uma semana de falação, risadas e boa música? José Júnior, indicado ao Prêmio Trip Transformadores, explica:

“Pegar mediadores de conflito que trabalham com cultura e colocar num espaço pra discutir é fundamental para a gente aumentar cada vez mais essa sinergia, que acaba sendo intuitiva. E, quando você aglutinar, a tendência é que reverbere cada vez mais”.

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