Luiza Batista: Domésticas não são da família, temos a nossa

por Redação

Figura central na luta contra a invisibilidade do trabalho doméstico, a homenageada do Trip Transformadores conversou com o estilista Dudu Bertholini sobre consciência de classe, ativismo e pandemia

Luiza Batista não tem medo de botar o dedo em uma das feridas mais expostas da sociedade brasileira, e que sangrou ainda mais durante a pandemia: a invisibilização e a falta de direitos dos trabalhadores domésticos. Homenageada pelo Trip Transformadores 20/21, ela é presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas e liderou o movimento de reivindicação pela quarentena remunerada para a classe, representando e dando voz a mulheres sistematicamente silenciadas. "A dificuldade maior não é conscientizar a categoria, a dificuldade maior é conscientizar os empregadores", explica.

Antes dos 10 anos Luiza já tinha perdido o pai, caído na miséria, morado na rua e começado a vida como trabalhadora doméstica. "Minha infância não foi uma infância propriamente dita", lembra ela. Aos 20, já tinha compreendido que precisaria brigar para garantir o básico pra si mesma e para família. "Minha consciência política foi se ampliando e fui me inserindo na luta junto com outras companheiras", conta. Aos 50, voltou a estudar, completou o Ensino Médio e foi eleita para presidenta do Sindicato de Pernambuco. 

No programa Prêmio Trip Transformadores, que vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura, Luiza revisitou sua trajetória em entrevista ao diretor criativo e stylist Dudu Bertholini. Assista a um trecho do papo ou leia a entrevista a seguir.

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Dudu Bertholini. Vamos começar do começo. Queria que você contasse um pouquinho da sua história, onde você cresceu, como foi a sua infância e com que você sonhava naquela época.

Luiza Batista. Minha infância não foi uma infância propriamente dita. O meu pai era agricultor, ele faleceu em 1961. Não tivemos direito a nada porque ele não tinha carteira assinada. A gente chegou a morar na rua. Aos nove anos de idade, fui trabalhar numa residência para cuidar de uma garota de cinco anos. Não deu muito certo, a menina me mordeu e eu bati nela, e levei uma surra por conta disso. Eu e minha mãe fomos vender milho cozido na frente da igreja. Até que ela foi trabalhar na casa da Dona Juanita, uma senhora muito generosa que aceitou que a minha mãe ficasse comigo lá. Me botaram para estudar, eu sonhava em ser advogada, mas ficou só no sonho. Aos 12 anos fui trabalhar em outra casa para ajudar minha mãe e aí foi a vida toda trabalhando. Quando tive meu primeiro filho esperei só 20 dias e fui trabalhar em casa de família de novo. E não trabalhava de carteira assinada. 

Como se deu o despertar da sua consciência política? Aí completei 20 anos e fui trabalhar numa empresa de ônibus, e foi aí que essa consciência política despertou. Eu já trabalhava há dois anos quando tive um problema e precisei engessar a perna, mas não pude acessar o auxílio-doença porque a minha carteira só estava assinada há seis meses. O Brasil vivia uma ditadura muito pesada e os sindicatos não podiam atuar. Infelizmente ficou por isso mesmo, me aborreci, pedi demissão e voltei para trabalhar como trabalhadora doméstica. Mas aí, quando fui fazer a entrevista para trabalhar na casa, falei: "Eu só trabalho de carteira assinada". Passei a trabalhar sempre com essa exigência, porque era isso que ia garantir que, no futuro, se eu precisasse do auxílio-doença ou aposentadoria, eu teria. Minha consciência política foi se ampliando. A casa própria, por exemplo, foi fruto de uma luta de muita gente e de várias comunidades. Depois veio a luta pelo transporte público, não tinha linha de ônibus para a gente. À medida que o tempo foi passando, fui me inserindo na luta junto com outras companheiras, fundamos um grupo chamado Grupo Espaço Mulher, que agora está com um projeto de agricultura urbana. Através do projeto TDC - Trabalho Doméstico Cidadão, que o sindicato conseguiu junto com a federação durante o governo Lula, voltei a estudar. Eu já tinha 50 anos. Sou fruto desse projeto. Concluí o Ensino Fundamental e fui eleita para presidenta do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do estado de Pernambuco. Mas quem sabe um dia eu volto a estudar. Tem gente que volta a estudar aos 80 anos, pode ser esse o meu caso, pretendo. 

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Eu não tenho dúvida de que você vai voltar a estudar, tendo em vista tantas lutas que você trava. A Organização Internacional do Trabalho afirma que o Brasil é o país com mais empregadas domésticas do mundo. Atualmente, são sete milhões de trabalhadoras e trabalhadores e a maioria parece não conhecer os seus direitos, já que apenas 28% trabalham com carteira assinada. Qual é o maior desafio para conscientizar essa classe trabalhadora e articular essa luta junto a eles? A dificuldade maior não é conscientizar a categoria, a dificuldade maior é conscientizar os empregadores, porque o empregador é que tem que assinar, tem que se cadastrar e cadastrar a trabalhadora no eSocial. Tem 47 anos que a gente tem esse direito, porém nunca atingimos 40% de trabalhadoras e trabalhadores formalizados. A lei existe, mas tem também a impunidade. Os patrões, mesmo sabendo que é lei, fazem de tudo para induzir a trabalhadora a não querer a carteira assinada. Falta consciência política para os empregadores, para as trabalhadoras e falta também a lei ser cumprida de uma forma mais rígida. O INSS não cumpre o papel dele, que é notificar esse empregador para ele recolher os encargos devidos. 

No Brasil, a primeira vítima fatal de Covid-19 foi uma empregada doméstica que contraiu o vírus da sua patroa, que tinha acabado de voltar de uma viagem na Itália. Essa senhora tinha 63 anos e faleceu em um hospital em Miguel Pereira, a mais de 120 km do Leblon, onde trabalhava. O que você acha que isso revela sobre as relações entre empregados domésticos e empregadores no Brasil? A falta de compromisso com a vida da pessoa. A desvalorização do trabalho doméstico. Esse fato chamou atenção da sociedade para o descaso com que nós somos tratadas. Em Sergipe, uma patroa queria obrigar a trabalhadora doméstica a usar uma máscara que já tinha sido utilizada por ela, uma máscara descartável. A pandemia trouxe essas coisas que normalmente ficam por baixo do tapete. A gente teve muitas reclamações. E, infelizmente, 2021 está sendo ainda pior do que 2020.

Luiza, quando a gente conhece pessoas como você, que lutam lutas coletivas tão importantes, que têm um papel tão transformador no meio em que atuam, é muito fácil a gente ver mais a luta do que a pessoa. O que te interessa fora do trabalho, o que te motiva? O que você gosta de fazer quando você não está trabalhando, o que te encanta na vida? Quando eu não estou trabalhando, o que é bem raro, gosto muito de estar com a família, de ir num rio que tem aqui perto, tomar um banho. É muito gostoso aquela aguinha gelada. Mas, falando um pouco da luta, nós temos que sempre reverenciar uma mulher negra que é a Laudelina de Campos Melo, que iniciou essa luta em 1936. A luta não se faz sozinha. Tem aquelas que me antecederam na Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, a Creuza, que passou 14 anos como presidenta. Aprendo muito com ela, cada conversa é uma aula. Temos a Lenira Maria de Carvalho, que foi indicada ao Nobel. São pessoas que me inspiram, que me orientam. 'Porque o ser humano nasce sem saber de nada e morre sem saber de tudo’ – eu li essa citação de um filósofo inglês e acho que é isso mesmo que a vida é. Nós somos sempre eternos aprendizes.

Enquanto as empregadas domésticas estão cuidando das casas e dos filhos de outras pessoas, quem é que cuida da casa e dos filhos delas? Você é mãe também, como é que você entende essa situação? Nas comunidades, é comum uma mulher que trabalha muito em casa tomar conta de 4 ou 5 crianças diferentes, e as mães pagam um pequeno valor a ela. No final do mês ela tem aquela renda e as mães têm condições de sair pra trabalhar, mas isso não é o ideal. O ideal seria que tivéssemos políticas públicas, creches suficientes para atender à demanda e escolas em tempo integral. A gente deixa os nossos filhos de qualquer jeito enquanto tomamos conta de outra casa, limpamos, organizamos, cuidamos dos filhos de outras mulheres que também estão no mercado de trabalho. E é aí que mora o perigo. Os nossos filhos vão crescer sem a presença da mãe cuidando direito deles. Muitas mães na periferia perdem seus filhos por essa situação, porque as crianças se envolvem logo cedo naquilo que não é o ideal, com coisas que não são lícitas. 

É muito comum que empregadas e empregados domésticos criem um vínculo afetivo com famílias com as quais elas trabalham há muito tempo. É comum ouvir patrões dizendo assim: "Ah, ela é praticamente da família". Você mesma trabalhou por 26 anos com uma mesma família. Então, eu te pergunto: como é que esse vínculo afetivo afeta as relações profissionais? É bem complicado, porque a trabalhadora se sente valorizada quando ouve: "Ah, ela é como se fosse da família". Ela só descobre que não é da família quando adoece e não tem auxílio-doença ou aposentadoria. É preciso desconstruir isso. Na Constituição, em 1988, a Lenira Maria de Carvalho foi escolhida para representar as companheiras para falar com o presidente da Câmara na época, o deputado Ulysses Guimarães. Ele falou que tinha uma trabalhadora na casa dele há 30 anos, que era como se fosse da família. Lenira, numa resposta bem rápida, disse para ele o seguinte: "Nós não queremos ser da família, porque temos a nossa, o que nós queremos é que na hora de levantar o crachá para nos garantir direitos, o senhor levante o crachá a nosso favor". O respeito no trato de relações de trabalho é o ideal. Pode existir uma amizade, nós não somos os inimigos. Mas eles são os empregadores e nós somos trabalhadoras e trabalhadores. Eu sou amiga das pessoas da casa onde eu trabalhei por 26 anos. Mas eu tenho a minha família, eles têm a família deles. 

Nessa luta, qual é o papel de quem não é um trabalhador doméstico? Entender que trabalhador e a trabalhadora têm que ter uma remuneração digna e uma condição de vida digna. Essa é a transformação que a gente tem que fazer e começar por nós mesmos. As pessoas têm que olhar para dentro de si e pensar: isso estaria bom para mim? Se não estaria bom para mim, não está bom para outra pessoa. Quando você começa a pensar assim, você se torna um agente transformador.

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