A criadora da ONG Davida reflete: ”Prostituição é uma coisa complexa, por que só a prostituta leva o estigma?”
A jornada de Gabriela Leite, umas das homenageadas no Trip Transformadores deste ano, começou na década de 1970 como a de muitos jovens que largam os estudos para trabalhar. A diferença é que ela largou a faculdade de filosofia, na USP, em São Paulo, para se tornar prostituta.
“Estava sentada sozinha, tomando uma cerveja, e vi aquelas meninas chegarem meia-noite, uma da manhã, para trabalhar e pensei: 'Eu quero trabalhar na madrugada. Não quero mais levar essa vida que eu levo'.
O segundo passo decisivo ocorreu em 1987, quando ousou promover o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas e passou a liderar a luta pelo reconhecimento dos direitos das mulheres que exercem a profissão mais antiga do mundo. Cinco anos de ativismo depois, Gabriela criou a Davida, uma das primeiras organizações sociais de apoio às prostitutas, que serviu de modelo país afora.
“Nossa ideia é tirar do código penal todos os artigos que criminalizam a prostituição, para que o empresário da prostituição possa ficar na legalidade, pagar todos seus impostos e tratar a prostituta com os direitos que ela tem.”
Mas a notoriedade veio em 2005, quando a organização criou a Daspu, uma grife cujo nome irreverente parodiava o de uma marca famosa e gerou uma ameaça de ação judicial. A concorrente, enrolada em acusações de sonegação de impostos, endividou-se a ponto de quase falir e foi vendida. Já a Daspu, cuja renda financia as ações da Davida, continua promovendo desfiles, lançando coleções e desafiando a hipocrisia geral.
“A indústria do sexo é uma indústria imensa, complexa. É muito dinheiro que roda. No entanto, todo mundo só vê a prostituta, que é uma das facetas da prostituição e sempre leva o preconceito e o estigma”
Em 2009, Gabriela escreveu sua história no livro Filha, mãe, avó e puta, que acabou sendo adaptado para o teatro. Em qual desses papéis ela mais se realiza? “Eu gosto muito de ser avó. Mas também gosto muito de ser puta.”
Leia a conversa que Gabriela Leite teve com a Trip.
Quais valores norteiam a sua vida?
Eu sempre lutei muito para a minha vida ser uma vida de liberdade - por mais amplo que seja esse conceito, e por mais que, muitas vezes, tenha ofendido alguém por conta disso. Sempre lutei para falar o que penso, para fazer o que quero e para viver sem muitas amarras.
Fale um pouco sobre a sua passagem entre a adolescência e a fase adulta.
Eu trabalhava em escritório, em São Paulo, e já tinha certa dificuldade em ter um trabalho fixo. Não conseguia conciliar o trabalho diurno, acordar às cinco da manhã, estudar e sair à noite, depois da faculdade, com os amigos pra boemia. Lembro um dia em que estava sentada em um bar, ali na Consolação, ao lado do Hotel Hilton, que tinha uma boate de mulheres. Estava sentada sozinha, tomando uma cerveja, e vi aquelas meninas chegarem meia-noite, uma da manhã para trabalhar e pensei: “Eu quero trabalhar na madrugada. Acho que vou vir aqui para fazer isso, não quero mais levar essa vida que levo”. E foi isso que fiz. No dia seguinte comecei a batalhar por outra vida.
E como foi o começo?
Fiquei feliz pela decisão. Depois, claro, teve muitos problemas. Mas, segui; fui às boates vestida de hippie – era época de se vestir meio alternativamente –, e você imagina entrar numa boate, na Rua Major Sertório, que à época fervia, vestida de hippie, com o cabelo enroladinho e tal: era ridículo. Mas tudo foi assim na minha vida [risos]. não sabia nada. Daí um dia descobri um prédio de prostituição no centro da cidade, na Av. Rio Branco. Ali eu estava na Boca do Luxo, onde tinha as boates La Licorne, a Michel, onde fui a primeira vez. Depois fui para a Boca do Lixo [região de prostituição no centro de São Paulo nos anos 50 e 60], num prédio na Rua Barão de Limeira, onde fiquei até sair de São Paulo e onde aprendi tudo de prostituição. Quando saí de São Paulo fui para Belo Horizonte, fiquei um ano lá, e aí vim para o Rio de Janeiro, para a antiga Vila Mimosa [uma das mais famosas áreas de prostituição da cidade] , e daqui não saí mais.
E a faculdade?
Quando fui para a prostituição, fazia faculdade de sociologia na USP. Entrei entre os anos de 1969 e 1970. Fazia um ano que tinha acontecido toda a história da Maria Antônia [conflito ocorrido em 68, entre estudantes de esquerda da USP e de direita do Mackenzie], estava tudo fervendo. Ou você pegava em arma e ia para a guerrilha, ou você era da contracultura. Bom, já era roqueira, amo os Rolling Stones até hoje, e não gostava dessa história de armas e tudo mais. E fui vendo que a questão da sexualidade também era uma espécie de revolução. Então, quando fui para a prostituição, a primeira questão que vi foi essa: porque tanto preconceito, se existe tanta procura? Vi que nenhuma mulher era bobinha de ficar ali se não tivesse cliente; tinha.
E como foi que começou a lutar pelos direitos das prostitutas?
Paralelo a isso, também tinha uma história muito grande de violência policial. Tinha um delegado, na 3ª Delegacia ali do centro, que torturava as prostitutas. Duas colegas desapareceram, e uma estava grávida. Era a época do delegado Fleury, que era o chefe de polícia. E aí falei com umas colegas do apartamento onde eu trabalhava: “Por que a gente não faz alguma coisa?”. E as meninas respondiam “Que é isso, a gente é puta, não pode fazer nada”. Daí disse: “Se a gente juntar todo mundo, dos vários prédios de prostituição” – e tinha muitos – “a gente consegue alguma coisa”. Então, convenci algumas colegas e a gente foi de prédio em prédio chamando as outras pra fazer uma manifestação na Praça da Sé, porque ninguém sabia disso que estava acontecendo. E fizemos uma manifestação que foi um rebu: saiu no Estadão, na Folha de S. Paulo, e aí vieram nos ajudar, desde aquele momento até hoje, os artistas alternativos. Aí a [atriz] Ruth Escobar, à época bastante jovem ainda, ofereceu o teatro na Rua dos Ingleses para a gente fazer uma assembleia. A gente foi, encheu e foi um escândalo: os jornais e revistas falando que as prostitutas tinham sido torturadas. E a gente conseguiu, com esse movimento, afastar o delegado da 3ª Delegacia. Isso em 78 pra 79. E tudo voltou ao normal, todo mundo voltou a sair na rua sem medo. Só que ninguém quis saber de continuar o movimento. É sempre assim, né? Não é só no meio das prostitutas. Se está ruim, todo mundo vai à rua; depois ninguém vai mais.
Mas você não desanimou...
Eu percebi que dava para fazer mais alguma coisa. E comecei a pensar no que era aquilo, que até hoje é a minha grande questão: a questão da moral sexual. A indústria do sexo é uma indústria imensa, complexa. É hoje a terceira ou segunda fonte de dinheiro derivado da internet. É muito dinheiro que roda. No entanto, todo mundo só vê a prostituta, que é uma das facetas da prostituição. A prostituição é uma coisa complexa, e por que sempre só a prostituta leva o preconceito e o estigma? Comecei a pensar nisso. Mas só conhecia a prostituição de São Paulo. Como boa paulistana não saía da cidade e eu só conhecia o baixo meretrício. Resolvi começar a viajar. Fui trabalhar em Belo Horizonte, trabalhei em zona de prostituição no interior, tanto no sul de Minas como no de São Paulo, trabalhei em Campinas e em muitos outros lugares.
Até chegar ao Rio de Janeiro. Quando cheguei no Rio de Janeiro, em 1982, a Benedita da Silva era recém eleita vereadora, no seu primeiro mandato. Ela estava fazendo o 1º Encontro de Mulheres de Favela e Periferia. E ela foi com a presidenta da Associação de Moradores do Estácio, bairro em que ficava a Vila Mimosa, na zona saber se a gente queria ir nesse encontro. Aí alguém falou para elas que tinha uma mulher meio maluquinha dentro da zona que gostava de ficar defendendo o direito das prostitutas; era eu, e me convidaram para ir nesse encontro. Chamei duas amigas e chegou uma hora que perguntaram se a gente queria falar alguma coisa. E eu fui lá pra frente e, pela primeira vez, falei em público – tinha até rádio e televisão. Falei: “Meu nome é Gabriela, e sou prostituta”. E aí foi aquele rebu, né? “Nossa, uma prostituta que fala”: essa era a frase. E aí começou. Todo mundo me procurava, fui convidada para falar sobre prostituição num colégio no Flamengo, e conheci o Rubem César Fernandes, do Viva Rio, que no tempo era diretor do ISER (Instituto de Estudos da Religião), e ele me convidou a ir ao ISER para sistematizar meu trabalho. Eu tinha o sonho de fazer um encontro nacional de prostitutas e aceitei ir. Lá conheci o Flávio [Lenz, marido e jornalista], e consegui fazer o primeiro encontro no dia 15 de junho de 1987, já com a representação de 15 estados brasileiros.
Como foi discutir sobre prostituição com a Bruna Surfistinha e o Oscar Maroni no programa do Roberto Justus, o Justus +, na Record?
Ela está ótima. No começo não gostava dela, falava: “Como você é contraditória’’. Ela era muito novinha na época do lançamento do livro, agora já está mais amadurecida e sempre se reporta a nós. Eu não gosto do filme. Não gosto dos papos que a Deborah Secco falou na época: “Oh, coitadinhas”, essas coisas. Gostei muito do [Oscar] Maroni, dono do Bahamas. Ele é maluco. É um cara que fala da história da sexualidade, tem coragem. Não conheço nenhum empresário da prostituição que, como ele, bote a cara a tapa.
"Ser prostituta não é crime; ter casa de prostituição é crime. Isso cria um problema sério, porque a prostituta, que não está na criminalidade, tem que conviver com quem está e viver na marginalidade."
Algumas pessoas costumam relacionar prostituição com criminalidade. O que você pensa sobre isso?
Ser prostituta não é crime; ter casa de prostituição é. Isso cria um problema sério, porque a prostituta, que não está na criminalidade, tem que conviver com quem está. E então tem que viver na marginalidade. Tudo que existe e é proibido cria máfias. A prostituta tem que viver nesse mundo que é meio pesado, e não tem nenhum direito trabalhista, porque a relação de trabalho não existe.
E qual seria a solução?
Fazer como na Alemanha. Tirar do código penal os artigos que criminalizam a prostituição, para que o empresário da prostituição possa ficar na legalidade, pagar impostos e tratar a prostituta com os direitos que ela tem. Se uma prostituta precisar chamar a vigilância sanitária porque a casa está imunda, como acontece no interior do Brasil, ela tem que poder fazer isso. A nossa luta é essa, pelo lado da indústria do sexo.
O sentimento é de otimismo?
Bom, o código penal brasileiro é de 1940, com raríssimas modificações. Então, é uma fotografia daquela época. E é muito difícil hoje você conseguir modificar, porque a sociedade está profundamente conservadora. O Congresso Nacional está conservador. O Senado pediu para um grupo de juristas uma reforma do código penal que já está pronta, e esses juristas tiram esses artigos. Não sabemos se isso vai passar no Senado. Achamos que vai ser difícil, assim como com as questões do aborto e da eutanásia. Mas, no momento em que esses artigos saírem do código penal, os caras vão entrar na legalidade e vão ter que ser empresários de fato e ter casas decentes. E cabe a nós, o movimento, trabalhar para defender a classe. E as meninas vão, quem sabe, formar seu sindicato.
Por que você acha que existe o preconceito com a prostituição?
Acho que existe por conta da moral sexual mesmo, né? Estava escrevendo um texto esses dias, e uma das coisas que percebo é que os intelectuais e acadêmicos que estudam sexualidade – não são muitos, mas tem uma grande parcela deles – só estudam as questões referentes à moral sexual, tipo: “A prostituição existe por quê?”. Estou batendo nessa tecla, faz um tempo, porque tem tantas nuances para se estudar, para abrir mais os olhos até dos nossos legisladores, dos deputados. Porque eles também não conhecem nada. Só veem essa parte.
Comente um pouco sobre as ações da Davida
Nós temos 32 associações de prostitutas no Brasil. Ainda não é muito, se você pensar no tanto de cidades que temos no país. Já fizemos vários encontros nacionais, temos uma lista de discussão bastante ampla – que se chama Lista Sem Vergonha –, temos um jornal, que o Flávio faz desde 1988, chamado Beijo da rua. A gente vem lutando pela questão de direitos humanos, denunciando quando acontece a violência policial, trabalhamos com prevenção de Aids com o Ministério da Saúde. Mas no último encontro nacional tomamos uma decisão: não vamos mais aplicar para projetos de Aids do Ministério da Saúde porque a gente quer trabalhar a saúde da mulher como um todo. Senão a gente continua no mesmo jogo, da moral: que prostituta só fica doente da cintura para baixo, isso é, só tem doença sexualmente transmissível.
Não aconteceram outras ações junto ao governo?
Quando a gente estava lutando pelo projeto de lei do Fernando Gabeira, fui a Brasília duas vezes. Ouvi deputado falando a seguinte história: “O deputado Gabeira está uns 15 anos à nossa frente. Ele é muito moderno. Quem sabe daqui a 15 anos a gente esteja pensando como ele”. Entendeu? Disseram que a sociedade não estava preparada. O próprio Gabeira disse que os contrários à “libertação”, entre aspas, dos escravos na época [da Lei Áurea] falavam a mesma coisa, que “a sociedade brasileira não estava preparada para a libertação dos escravos”. Quando a sociedade vai estar preparada?
Você não acha que a chamada “revolução sexual’’ deixou as pessoas um pouco mais abertas em relação ao sexo e, consequentemente, à prostituição?
Na verdade, a revolução sexual, pra mim, é o advento da pílula anticoncepcional. Mas naquela época, por conta de toda essa questão efervescente e tal, a prostituta era um pouco mais respeitada. Só nessa época, veja bem! Mas depois começamos a viver uma onda extremamente tradicional. A juventude de hoje é muito conservadora. E, assim, o estigma passou a ficar forte outra vez. Eu acho que a prostituta precisa perder o autoestigma. Ainda tem um grande número de prostitutas que não quer saber de aparecer. Se eu chamar colegas aqui para dar entrevista, poucas virão. As mais antigas até falam, as mais jovens, não. Eu entendo. É muito difícil viver o estigma, aparecer, e às vezes os filhos não sabem. Mas eu também acho que as pessoas devem aparecer, porque essa é uma questão muito importante para o movimento, para as pessoas saberem que prostituta é feita de carne e osso, é uma mulher como outra qualquer. A questão é essa: você tem que fazer parte da sociedade. Quando eu fui ao Inca (Instituto Nacional de Câncer), porque eu estou tratando um câncer, na minha primeira consulta o médico, num determinado momento, falou: “Me conte um pouquinho sobre a sua vida profissional”. E eu falei que era secretária e depois resolvi ser prostituta. Ele ficou me olhando, olhando, e depois virou um grande amigo. Eu acho que sempre quando você fala a pessoa, primeiro, leva um susto. Depois ela entende.
"Acho que as pessoas devem aparecer, porque essa é uma questão muito importante para o movimento, para todos saberem que prostituta é feita de carne e osso, é uma mulher como outra qualquer. A questão é essa: você tem que fazer parte da sociedade."
Deve ter muitas histórias como essa...
Um dia, faz tempo, eu estava num bar que frequentava todo dia depois do Davida. E tinha um senhor, desses senhores solitários que ficam sozinhos no bar tomando a sua bebida. Ele puxou conversa comigo e ficamos conversando. Lá pelas tantas ele me perguntou o que eu fazia na vida. Falei pra ele: “Bom, no momento, eu sou diretora de uma instituição. Mas também sou uma prostituta aposentada sem direito à aposentadoria”. Aí ele me falou assim: “Que isso, minha senhora! A senhora foi, hoje é uma mulher direita”. Quer dizer, ele queria me proteger de mim mesma [risos]. Para você ver o que é isso. Ser puta é uma carga pesadíssima. Nem quando você fala que é [prostituta], as pessoas querem admitir que é uma coisa legal. Eu acho que as coisas devem ser ditas, e não é por isso que eu vou ser maltratada no sistema de saúde, no educacional. Porque, por exemplo, se eu tivesse um filho pequeno neste momento, e as pessoas o tratassem com preconceito na escola, eu iria lá reclamar e perguntar o que estava acontecendo. Isso é o que falta às prostitutas: poder viver em sociedade.
Tem algo na profissão que de você não goste?
Eu não gosto da prostituição de rua. Na verdade, nunca consegui trabalhar na rua. Na Avenida Atlântica, por exemplo. Você fica muito exposta e tem pouca proteção. Se é uma rua pequena, como a rua Saint-Denis, em Paris, as prostitutas têm um hotel. Como era na Praça Tiradentes aqui, como era na Boca do Lixo em São Paulo, como é a zona boêmia em Belo Horizonte, daí tudo bem, que a proteção é maior. Mas eu acho que devem ter boas casas, bonitas, arrumadas, charmosas, porque é uma atividade da noite. Infelizmente, no Brasil até o jogo é proibido. Já estive em países da América Latina onde os cassinos não são proibidos e as prostitutas também circulam por eles. Mas como o Brasil é um país em que os governos adoram tutelar o povo, então não se tem cassino, não tem prostituição direito, como se as pessoas não fossem donas delas próprias e soubessem quando vão jogar, quando vão procurar uma prostituta.
E qual foi o momento, nessa longa jornada, que mais te transformou?
Um fato que me marcou muitíssimo, e que me mostrou que a minha militância seria para o resto da vida, foi o encontro nacional que eu consegui realizar em 1987. No último dia a gente fez uma apresentação pública no Circo Voador e tinha mais de duas mil pessoas. Aquilo pra mim foi chocante, no bom sentido. E me mostrou que dava pra fazer alguma coisa.
Mas, pessoalmente, o fato transformador foi ter concluído que era impossível viver a vida que minha mãe queria para mim. E que eu ia ter que acabar brigando com ela. Quando eu tive minha filha, minha mãe pensou que ali ela tinha onde me segurar. Eu já era bicho solto, mas, como fiquei grávida ela falou: “A partir de agora vai ser como eu quero. Errar uma vez, tudo bem, a segunda vez você não vai errar”. Um dia, quando eu estava trabalhando e meus colegas me convidaram para sair. Eles sempre saíam pra tomar cerveja e eu nunca podia ir. Nesse dia resolvi ir. Cheguei em casa lá pelas duas da manhã. Minha mãe abriu a janelinha da porta: “Ah, é você”. Fechou a janelinha, demorou um tempo, abriu a porta e botou minha mala para fora. “Eu falei para você que ia ser como eu queria. Se não quer, aqui está sua mala.” Eu sentei num concreto ao lado e fiquei olhando a minha mala. Eu tinha duas opções naquele momento: uma era tocar a campainha, pedir perdão, falar que isso não ia acontecer mais, e entrar em casa. A outra era ir embora, deixar minha filha lá, e tudo mais. Eu vi o dia clarear olhando para a minha mala. Quando eram umas seis da manhã, dia claro, peguei a minha mala e fui embora. E não voltei mais, nunca mais. Eu acho que esse foi o dia.
E quando encontrou de novo sua família?
Fui conhecer minha filha quando ela casou. Ela tinha 20 anos e na época meninas com menos de 21 precisavam de autorização da mãe para casar. E minha mãe, nesse dia, chegou para mim e falou assim: “Por que você nunca procurou a gente?”. Aí eu percebi que ela não queria que eu fosse embora, era só terror. Mas eu fui. Com tudo que aconteceu, os dias ruins, os bons, e as coisas todas, acho que foi a decisão mais importante que tomei na vida.
Nessa minha trajetória, conheci muita coisa, e muita gente. Uma vez eu estive pessoalmente com o Jorge Amado, e na época do nosso encontro ele mandou uma carta de apoio ao movimento. E eu me chamo Gabriela no meio da prostituição, e acabou virando o meu verdadeiro nome, por conta da sua personagem Gabriela, da sua liberdade. Para mim, é impossível existir alguém como ela, uma pessoa tão livre. Mas eu tento.