Milly Lacombe fala sobre as memórias da noite de maio em que conheceu o amor de sua vida
Você nunca sabe o dia em que vai encontrar o amor da sua vida. Por isso, nenhum aviso, premonição ou intuição me preparou para aquela noite fria de maio. Como já faz tempo que isso aconteceu, posso falar agora, em detalhes, sobre o momento que antecede o encontro com o amor de sua vida. Sobre os segundos que separam sua existência até ali do resto dela. Trata-se, entendam, de um tempo muito peculiar, medido em frações de segundos. Trata-se de uma fenda temporal, mais exatamente. Mas, se você ficar atento, conseguirá, depois que tudo passar, lembrar de cada um dos detalhes, como eu faço agora.
Quando você se encontra com o amor da sua vida você está em um restaurante da cidade esperando, com amigos, por uma mesa. De dentro do salão lotado o amor da sua vida vem andando na sua direção, muito sofisticadamente, vestido em um elegante casaco de couro, botas de salto muito alto, o cabelo – escuro, longo e brilhante – solto. Você fica completamente imóvel, vendo o amor da sua vida vir na sua direção.
O restaurante não é grande, mas o amor da sua vida está do outro lado do salão lotado, ainda vindo na sua direção. As pessoas que estão no restaurante, estranhamente, não se movem mais. Nem falam. O único ser que se move naquele lugar é o amor da sua vida. O único som é o do salto do amor da sua vida batendo no piso frio do restaurante. Se você reparar bem, o amor da sua vida se movimenta em câmera lenta. Talvez para que você consiga melhor registrar todas aquelas cores, sons e sensações. Você, ao contrário do resto das pessoas, consegue se mover. Mas você não quer se mover. Você quer simplesmente assistir ao amor da sua vida vindo em sua direção, completamente alheio ao fenômeno físico que paralisou o mundo naquele instante.
Em casa, na cama...
O amor da sua vida finalmente cruza o salão e chega até você. Diz alguma coisa, mas você não consegue entender porque está completamente abduzida por aquele exagero de beleza. Você se esforça para sacar pelo menos uma frase e percebe com algum esforço que o amor da sua vida está dando oi. E você entende que já tinha visto o amor da sua vida antes, entende que o amor da sua vida é uma amiga de amigos seus. E que ele está dizendo coisas sobre como gosta de ler o que você escreve. Em pânico, você intui que tudo na sua vida está prestes a mudar definitivamente.
O amor da sua vida dá um beijo no seu rosto e se afasta, talvez achando que, dada sua catatonice, você seja uma pessoa intelectualmente desacelerada. O amor da sua vida retorna para o outro lado do restaurante. As pessoas voltam a falar e a se movimentar. Você agora está fora da fenda, mas para sempre alterada.
Você senta para jantar, mas, em estado de abdução, já não consegue prestar atenção em nada. Você pede uma massa, uma taça de vinho, ainda tentando entender o que está sentindo. Tudo fica ainda mais estranho quando, de saída, o amor da sua vida passa pela mesa que você está e dá adeus com as mãos. Você não quer que o amor da sua vida vá embora, mas não sabe o que fazer. Então percebe que o universo talvez esteja a fim de ajudar quando alguém que está na mesa diz conhecer o amor da sua vida e a convida para sentar. O amor da sua vida puxa uma cadeira e senta bem ao seu lado. E você passa o jantar tentando parecer minimamente inteligente para, assim, apagar aquela primeira impressão. Mas a tarefa é árdua porque você só consegue pensar em ir para casa com o amor da sua vida. E em deitar com ele na mesma cama, fazer amor, comprar o café da manhã, o almoço e o jantar. Só consegue pensar em convidar o amor da sua vida para morar com você. Em viajar com ele, em ir ao cinema com ele, em acordar ao lado dele todos os dias do ano. O amor da sua vida ainda está falando e você, mentalmente, começa a despi-lo. O amor da sua vida dá um gole no vinho que alguém colocou ali sem saber que, dentro da sua cabeça, ela já está sem roupa, deitada na sua cama, dizendo que a ama.
O jantar termina sem que você saiba que o amor da sua vida vai telefonar no dia seguinte. E que será apenas dali a duas noites que vocês dormirão juntas, fazendo, como em seus sonhos, amor a noite inteira. O jantar termina sem que você saiba que, dentro de alguns dias, estará morando com o amor da sua vida, com quem terá conseguido atingir o raríssimo ponto de ter, em doses intensamente iguais, sonhos e memórias. Sem que você se dê conta de que não demorará muito para apresentar o amor da sua vida para toda a família, nem que, juntas, começarão a frequentar a casa de sua mãe – que até pouco tempo não engolia sua orientação sexual – semanalmente para jantar. E que o amor da sua vida vai comer o macarrão alho e óleo da sua mãe, e repetir, dizendo que aquele é o melhor macarrão que já comeu na vida. E que sua mãe, depois de tomar algumas taças de vinho, vai ter um acesso de riso na mesa e, com ele, provocar um acesso de riso no amor da sua vida.
O jantar termina sem que você entenda que foi em uma noite fria de maio que o amor da sua vida entrou em você, vestida em um casaco de couro e botas de salto, para nunca mais sair.
*A carioca Milly Lacombe, 41 anos, é jornalista. Seu e-mail: milly@trip.com.br