As vítimas são quem ousa representar o diferente

por Milly Lacombe

Matheusa Passareli foi assassinada por ter se atrevido a ser quem era

Estamos contando nossos mortos. Um a um, como em uma guerra, empilhamos corpos em valas que não podemos ou não queremos enxergar. Valas de difícil acesso para quem mora nos centros das grandes metrópoles porque o genocídio acontece nas periferias e não é mostrado nos telejornais. As vítimas são todos aqueles que ousam representar o diferente. Qualquer movimento que escape da hetero-normatividade macho branca e elitizada está correndo risco de vida. Não é preciso ser rico para estar fora desse alvo, basta compactuar com os valores do poderio econômico e, claro, ter a pele branca.

Todos aqueles que praticam a resistência à normalização, seja ela política, sexual ou comportamental, correm risco de serem mortos: com tiros de fuzis, queimados, esquartejados, como quiser performar o poder que pretende deixar tudo como está.

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Embora na maioria das sociedades um homem seja do sexo masculino e uma mulher do feminino, “homem” e “mulher” são características sociais e não biológicas. Mas há aqueles que questionam essa verdade anatômica. Há os corajosos: as heroínas que gritam “sou mulher” mesmo possuindo um pênis, e os que gritam “sou homem” mesmo sendo donos de uma vagina.

É preciso um tipo de força descomunal para se assumir como qualquer coisa diferente daquilo que a sociedade espera que você seja. Se já é difícil dizer ao papai que o sonho do herdeiro não é exatamente assumir a empresa mas fazer um retiro espiritual em Mumbai, imagine bater no peito e dizer “não me chamo Matheus. A partir de hoje atendo por Matheusa”.

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Que tipo de tenacidade vive dentro de uma pessoa assim? O que um ser humano possuído por essa força poderia fazer pela comunidade em que vive se fosse amplamente aceito? O que faria pela cidade em que mora, por aqueles que ama?

A história de todas as sociedades mostra que elas fazem nascer o homem e a mulher que serão úteis àquela específica sociedade, a fim de que as coisas permaneçam como sempre foram. Não é preciso ser um tipo especial de gênio para perceber que as coisas não andam assim tão boas e que precisamos de transformações.

Seres humanos que se recusam a seguir a norma são aqueles que nos conduzirão às transformações necessárias. Mas eles apavoram. Eles causam náuseas. Eles provocam horror. E eles e elas estão sendo executados.

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Como lidar com a mulher que tem pênis e com o homem que tem vagina? Como conceber a ideia de que, além dessa aberração, eles se comunicam e se expressam de forma perfeita, elaborando ideias significativas e que incomodam a respeito de exclusão, de violação, de dilaceração? Como inseri-los no mercado de trabalho sabendo que são o que são? Seria mais simples se eles não fossem capazes de ser tão expressivos e criativos. Seria mais simples se permanecessem calados, invisíveis. Seria mais simples se não nos lembrassem de todos os desejos que tentamos esconder.

Haverá um dia em que políticas públicas abrigarão as Matheusas que estão entre a gente, desobrigando-as de exercer o único trabalho hoje possível, que é vender clandestinamente seus corpos aos machos que mantêm as instituições funcionando em nome da família, da tradição e da propriedade? Acredito que sim porque não existe mais espaço para a invisibilidade. As Matheusas estão aqui; as Marielles não se calarão. Podem executá-las. Podem torturá-las. Podem dilacerá-las. Elas seguirão existido. Porque a cada execução de uma delas, parte do legado vai existir em cada um de nós. E, dentro de cada um de nós, ele se multiplicará.

Trata-se, na verdade, de um legado extremamente rico, mas bastante simples: um que nos implora, que nos invoca, que nos suplica a aprender a amar.

Matheusa Passareli tinha 21 anos e era estudante de artes da UERJ. Não se definia nem como homem, nem como mulher. Foi assassinada na noite de 6 de maio no Rio de Janeiro. Por ter ousado ser quem era.

Créditos

Imagem principal: Ilustração Carol Ito

Ilustração Carol Ito

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