Trocamos uma ideia com a MC paulista, que exibe em Berlim o documentário Bixa Travesty e segue pela Europa com sua Trava Tour
“Muito prazer, sou a nova Eva. Filha das travas, obra das trevas.” É assim que Linn da Quebrada se apresenta no documentário Bixa Travesty, selecionado para a sessão Panorama do Festival de Berlim, que terá sua quarta e última exibição no evento no próximo sábado (24 de fevereiro).
Além de mostrar a vida da MC paulistana dentro e fora dos palcos, o filme traça um panorama da cena musical promovida por artistas trans em São Paulo, como Liniker. O casal que dirigiu o longa, Kiko Goifman e Claudia Priscilla, assina outros trabalhos dedicados às questões de gênero: com roteiro da dupla, o curta Amapô (2008) retrata a vida de uma travesti e o documentário Olhe pra mim de novo (2012) perfila o transexual nordestino Sylvio Luccio.
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Bixa Travesty lembra como Linn da Quebrada entrou sem pedir licença na cena musical, defendendo a causa TLGB (ela faz questão de colocar a sigla de transexualidade à frente) e as infinitas possibilidades de experimentar gênero, corpo, sexualidade e arte. Com ela, estão a backing vocal, Jup do Bairro, e DJ Pininga, que formam uma aliança para furar a “cultura falocêntrica, de tudo girar ao redor do macho”, como ela explica à Tpm.
Depois das exibições do documentário no festival alemão, o grupo segue em turnê pela Europa com sua Trava Tour, passando por Amsterdã, Paris, Lisboa, Madri, Colônia e Munique, até a volta para Berlim. A cantora apresenta seu disco de estreia Pajubá (2017), palavra que remete à linguagem usada no universo TLGB, que, muitas vezes, incorpora termos das religiões afro-brasileiras. O álbum foi produzido por BadSista e traz participações de Mulher Pepita, Glória Groove e Liniker.
A caminho da Europa, Linn conversou com a Tpm por e-mail sobre as gravações do documentário, o som “afro-funk-vogue” de Pajubá, empoderamento e angústias.
Tpm. O que te fez topar gravar o documentário Bixa Travesty?
Linn da Quebrada. Acho que a proposta de enxergar a cena da música TLGB paulista como um todo, utilizando minha trajetória como ponto de partida para essa narrativa. Também trouxe muita coisa minha pro filme, criei ao lado dos diretores.
Foi desafiador expor sua vida fora do palco? Antes de "estar" cantora me iniciei nas artes com o teatro e a performance. Me expor é um modo de recriar narrativas, de utilizar meu corpo para dar forma e vazão às minhas potências. Nesse sentido, não sei se foi desafiador, mas acredito que tenha sido diferente e novo.
Qual o ponto alto do filme, na sua opinião? Aiii, difícil. Gosto de vários momentos desse documentário, do filme todo na verdade! Mas acho que minhas cenas com a Jup são bem divertidas, passam muito da nossa relação cotidiana, da força que a gente encontra uma na outra. Foram cenas que adorei gravar também.
Qual a melhor versão de Linn em Bixa Travesty? Acho que a Linn que se mostra uma pessoa comum, feita de erros e acertos, seguranças e tristezas. O filme me mostra de modo muito natural, isso é importante. Me tira dessa posição de “diva” que minhas fãs me colocam às vezes, mas que recuso. Não sou diva e nem quero ser. Sou um corpo cheio de potências e que traz tudo isso na voz, uma entre muitas outras. Mostra minha música como força pra seguir desconstruindo e reinventando.
Quais as suas expectativas para a Trava Tour na Europa? Eu e Jup sabemos que estamos viajando para ocupar novos espaços, o continente europeu, onde surgiu as principais ideias e conceitos que movem nossa sociedade hoje. Vamos com nossos corpos, nossa música, nossa arte. É para essas pessoas que vamos cantar e expor nossas questões.
Desde quando você e a Jup do Bairro são parceiras? Como começou isso? Minha “melhor”! A gente faz tudo juntas, sem ela não sei como seria, não sei se seria... Tô feliz demais que ela participa dessa tour europeia. Começamos juntas no meu primeiro show, no Periferia Trans, evento no Grajaú, em 2016. Ela subiu ao palco para uma participação espontânea e desde então não desceu mais.
E DJ Pininga? Como é o diálogo entre as suas letras e os beats dele? Pininga é minha mana, me conhece muito e temos referências e gostos em comum. Foi Pininga quem sugeriu a BadSista pra direção musical de Pajubá, que também sacou e desenhou bem o que eu queria. Minhas letras encontraram no funk um caminho muito natural e hoje a gente já extrapola isso. Gosto de falar que hoje meu som é mais ou menos como um “afro-funk-vogue”.
No seu trabalho parece que você mistura os dois caminhos: a busca pelo autoconhecimento e a afirmação diante de uma sociedade transfóbica e racista. Como é lidar com esse jogo complexo? Costumo falar que minha música é, ao mesmo tempo, arma e antídoto, né? Eu me mato e sobrevivo por meio dela, desloco o ponto central do macho para os corpos feminilizados, crio um novo vocabulário, de tudo girar ao redor do homem. Chega, sabe? Agora, quem vai contar nossa história somos nós mesmas - e no nosso idioma.
Você já falou sobre a necessidade da “política dos afetos”. O que é e como ela pode funcionar num mundo tão polarizado e permeado por discursos de ódio? É disso que minha música também fala: afetos. Eu e minhas amigas fomos acostumadas a esconder nossos desejos, a ver proibição no que nos é natural, a amar pelos cantos. Com minha arte paro de esconder tudo isso e coloco nossos desejos em lugar de destaque, no centro de tudo. Falo dos corpos feminilizados e suas vontades. Na prática, isso funciona nos fortalecendo, criando laços de proteção entre nós, tirando essas proibições de cima da gente. Os homens são bem alinhados, né? Sempre tão cúmplices e tão protetores entre eles. Está na hora das mulheres também se fortalecerem cada vez mais, se unirem, de estarem juntas em suas potências e afetos.
Qual sua maior fraqueza? Insegurança. Não tem como a gente ser forte o tempo todo. A gente erra, tem medo.
Com as redes sociais, estamos expondo mais nossa vida pessoal e escolhas em relação ao gênero. O que você acha disso? Acho que para muitas pessoas se posicionar é também sobreviver. É resistência. Não sei avaliar se essas manifestações virtuais vem de propósitos maiores ou se é só falação… Mas é um bom sinal quando você passa a falar mais desse tipo de coisa, a encontrar mais pessoas levantando essas questões por aí. É Pajubá, reinvenção de linguagem, tomada de narrativa.
Créditos
Imagem principal: Filipa Aurelio/Divulgação