Giovana Madalosso: Ser livre é o grande prazer

por Giovana Madalosso

Criada num ambiente onde só um prazer era importante – o do homem –, a escritora reflete sobre o que deseja ensinar para a sua filha

Fui criada num ambiente em que o prazer feminino não existia: nem no verbo, nem na cama. Meus pais esperavam que eu fizesse sexo só depois de casar, e isso em plenos anos oitenta. Minhas amigas não falavam de masturbação. Estávamos preocupadas em ficar magras, saradas e alisar os cabelos para atender o único prazer que importava: o dos meninos. 

Os mesmos meninos que logo nos chamariam de galinhas e vagabundas, e por quê? Justamente por termos escolhido dar prazer para eles. E no ritmo deles. Um sexo bang bang bang aprendido nos filmes pornôs feitos também para eles. 

Nada no sexo era feito para as mulheres. As pílulas mexiam com nosso humor. O DIU dava cólica. As calcinhas fio-dental assavam nossa bunda. Os sutiãs meia-taça espetavam nossas costelas. E claro que eles não queriam usar camisinha. O que muitas vezes nos levava ao mais triste anti-clímax: o aborto, a herpes ou a AIDS.

Só fui me entender como um elemento não-servidor do outro aos vinte e quatro anos, quando me mudei para Nova Iorque e, longe das sombras dos bigodes latinos, ganhei um vibrador de um amigo americano. 

Com esse amigo também transei sem paixão ou qualquer tipo de compromisso, iniciando um maravilhoso processo de dissociação: amor é uma coisa, sexo outra, e os dois não precisam vir juntos. Aliás, também é uma delícia quando não vêm juntos.

Desde então, sempre tenho algum vibrador. Uma vez, quando já morava sozinha no Brasil, um deles desapareceu. Um mês depois, a faxineira, toda constrangida, disse que havia encontrado atrás do sofá. Eu nunca levo vibradores para o sofá. Perguntei se ela queria seguir emprestando o brinquedo por mais tempo, quem sabe para sempre. Ficou toda vermelha, mas logo apertou o dildo contra o peito e disse que sim, desculpe e obrigada!

Durante a quarentena, fui passar um tempo com meus pais. Observando minha mãe triste, cansada e, obviamente, transando pouco, perguntei se não gostaria de ganhar um brinquedinho vibrante de presente. Iria lhe fazer tão bem quanto o quebra-cabeças que estava montando e encaixaria muito mais fácil. Ela não me deixou nem terminar a frase: que absurdo, nunca vou usar uma coisa dessas. Como se eu tivesse lhe oferecido um fuzil AK-47.

Depois que minha filha nasceu, acompanhei o caso de duas amiguinhas dela. Ambas descobriram a masturbação acidentalmente, aos seis anos. Uma teve o prazer reprimido pelos pais. Se fosse flagrada se tocando, levava bronca. Foi a psicólogos, neurologista. Passou a tomar tarja-preta para ver se baixava a ansiedade considerada um possível deflagrador. A outra criança só recebeu uma orientação: não fazer na frente dos outros. Uns anos depois, ambas seguiam se tocando com a mesma frequência.

Agora minha filha tem nove anos. Ainda não me perguntou sobre sexo ou de onde vêm os bebês, mas estou pronta para falar disso sem meias-palavras. Vulvas não são pombinhas, pênis não são varinhas mágicas. Não poder nomear nossos órgãos também é um tipo de castração. Precisamos ser donas do nosso corpo e também das palavras que se referem a ele.

Ser livre é o grande prazer.

Créditos

Imagem principal: Renato Parada sobre pintura de Klimt (Três Idades Da Mulher)

Giovana Madalosso é autora de Suíte Tóquio, Tudo pode ser roubado e A teta racional. É colunista do Jornal Rascunho e da plataforma de mudanças climáticas Fervura.

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