Devendra Banhart

por Milly Lacombe
Tpm #137

Se existe um novo homem, o músico e compositor talvez seja uma espécie de arquétipo

Se existe um novo homem no horizonte, o músico Devendra Banhart, em turnê no Brasil este mês, talvez seja uma espécie de arquétipo: sensível, emotivo, feminino, sem medo de mostrar cicatrizes e incertezas. Em duas palavras, escandalo­sa­mente apaixonante.

Ele tinha 9 anos quando ouviu pela primeira vez alguém falar em cirurgia plástica. “O que é isso?”, perguntou a um amigo. E, ao escutar a explicação, ficou horrorizado e sentiu ganas de compor uma música, sua primeira música. Correu para o quarto, pegou papel e caneta, escreveu os versos, esperou que os pais chegassem e anunciou que cantaria para eles. Os dois, e a avó materna, sentaram-se no sofá do apartamento e viram o tal amigo entrar na sala com um Tupperware e uma colher de pau – era a percussão, enquanto Devendra esgoelava-se no refrão: “You don’t need no plastic surgery cuz we’re all gonna dieeeeeeeeee”. Quando acabaram, a avó disse: “Nunca mais deixem esse menino compor”.

Para nossa sorte, Devendra continuou a compor, embora sua segunda criação acontecesse apenas com 16 anos. À época da primeira investida, a família morava na Venezuela, onde ele viveu até os 13 anos. “É engraçado, mas eu tenho pouquíssimas memórias da infância. É estranho isso”, disse quando nos sentamos para conversar durante uma tarde de outono no Brooklin, em Nova York, cenário do ensaio exclusivo que estampa as próximas páginas. “Quando esta entrevista acabar, vou fazer esse trabalho que estou fazendo com uma analista, que é um trabalho para tentar lembrar das coisas.” Enquanto ele falava, eu, esta vergonha para o jornalismo imparcial, já havia me deixado levar e, encantada, apenas escutava. Como não fiz uma próxima pergunta e apenas continuei a olhar abobadamente para aquele homem que na minha frente se abria, ele continuou: “É quase como se existisse esse livro de fotos de minha infância e ele estivesse muito, muito sujo. E quanto menos eu olho para ele, mais sujo ele fica, e quanto mais sujo ele fica, mais difícil é olhar e menos eu quero tentar enxergar, e quanto menos eu quero tentar enxergar, mais sofrido é olhar.  

"Não  havia nada de errado em me vestir de mulher"

Entrar nesse mundo é uma coisa emocional e esgotante, mas aos poucos o álbum vai ficando mais limpo... é libertador, sabe? Não é um processo divertido, e eu tenho uma toalha que levo comigo a todas as sessões. Uma toalha que uso para chorar”.

A essa altura do papo, não fosse eu tão convictamente gay, já o teria pedido em casamento, embora esse novo homem, que Devendra representa com exuberância, não acredite em pedidos de casamento ou em qualquer convenção. Esse novo homem sequer precisa de papéis e assinaturas para se jogar de cabeça em uma relação de amor.

Devendra é americano do Texas, mas ainda muito pequeno foi com a mãe para a Venezuela, onde ela nasceu. A infância latina deixou marcas. Foi lá que se apaixonou pela música de Caetano Veloso, João Gilberto, Chico Buarque, Gilberto Gil e Maria Bethania. “Dentro de casa havia essa música para a gente refletir, e fora, nas ruas, havia cumbia, merengue, salsa. Eram dois mundos: o mundo da música de dançar e o mundo da música de pensar.”

 

Mantra
A mãe, ele diz, teve enorme influência no homem que ele se tornou. “Ela é um espírito livre, uma mulher excêntrica, o arquétipo da latina caliente apaixonada. É aquela que em uma festa vai ser a primeira a dançar na mesa, e as pessoas vão parar para olhá-la, uma mulher muito charmosa, o centro das atenções.” Enquanto fala da mãe, seus olhos ficam ainda mais vivos, e ele segue. “De um jeito estranho, a liberdade que a guia e a falta de convencionalidade com que encara a vida foram as coisas com as quais ela me protegeu. Eu sou marginal, e cresci dentro de um certo isolamento que, embora tenha seus problemas, também tem muita liberdade.”

Nesse universo repleto de possibilidades, não havia quem lhe dissesse que talvez não fosse certo usar um vestido da mãe – então ele foi lá e vestiu. “Aprendi muito cedo que não havia nada de errado em me vestir assim. Como minha voz era muito ‘uuuuuu’ [e ele deixa sair um som agudo], eu não soava como um desses homenzarrões. Pensei que, se eu colocasse um vestido e me transformasse em mulher, talvez pudesse cantar.”

Um garoto que coloca o vestido da mãe para cantar não é uma coisa que muita gente vá apoiar por aí, especialmente na Venezuela, tão paternal, tão macha. Devendra existe fora desse padrão: a liberdade com que a mãe encarava a vida permitiu que ele tivesse seu próprio mundo.

Falando sobre esse novo homem, ele diz que espera que nós estejamos perto de entender que pessoas são pessoas e que, dentro dessa prisão emocional na qual somos obrigados a viver, consigamos dizer “hoje quero usar meu salto alto” ou “hoje quero meu coturno” ou até “who gives a shit how I dress?”. Conto a ele de um político brasileiro que recentemente se orgulhou, via Twitter, de nunca ter chorado. “Talvez uns dez anos atrás as pessoas escutassem um homem dizer que nunca chorou e falassem ‘nossa, que incrível’, mas acho que no atual estágio da evolução humana a maioria das pessoas é capaz de sentir empatia por um homem que não chora, de dizer ‘ô, coitado’.”

Como estamos conversando relaxadamente, esqueço que estou ali para fazer uma entrevista. Digo que escutei um mantra havaiano que se baseia na repetição das palavras “perdona-me, lo siento, te amo, gracias”, e ele outra vez me olha com aqueles olhos intensos, que são capazes de desarmar exércitos, e diz que reza todas as noites e todas as manhãs. “Peço para conseguir ser grato. ‘Please, help me be grateful.’ Mas esse seu mantra, uau, que coisa mais linda. Vou anotar”, e pega minha caneta para escrever as palavras no próprio braço. 

"Lo siento, perdona-me, te amo, gracias"

Pergunto se a mãe dele vai aos shows, e ele diz que na recém-terminada turnê americana ela foi a seis. “Mas aí eu disse: ‘Mãe, agora chega, eu preciso tocar, sabe?’. É mais ou menos como ter minha mãe num blind-date. Eu estou no palco e estou de certa forma tentando seduzir, mas com minha mãe ali...” Sobre a turnê brasileira em novembro (dia 13 em São Paulo, 14 no Rio, 16 em Fortaleza e 18 em Porto Alegre), ele acha que dificilmente vai superar, em termos de experiência musical e elogios, o que aconteceu da primeira vez, quando tocou no extinto Tim Festival, em 2006 – época em que ainda usava cabelos longos, gostava de se apresentar sem camisa e era um hippie de visual bem diferente do look “limpinho” que exibe hoje. “Deveríamos entrar à meia-noite e eu soube que Caetano estava por lá. Fiquei nervoso, o show atrasou, entramos lá pelas 2 da manhã, e eu pensei: ‘Pelo menos Caetano não deve mais estar aqui e a gente pode tocar sem ele ver’. Tocamos mal, foi terrível, mas me senti aliviado. Só que aí ele aparece no camarim, camisa fora da calça, e diz: ‘Gente, foi péssimo, e eu amei’. Nada pode superar um elogio como esse.”

Ao final, não resisto e jogo à mesa um clichê: o que ele acha que querem as mulheres? Como ele não é um homem-clichê, não responde o usual “quem sabe?”, e diz sem pestanejar: “Acho que querem consistência, honestidade, alguém que seja capaz de dizer com o coração: ‘Lo siento, perdona-me, te amo, gracias’”. Ai.

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