Vejo meu núcleo de afeto e segurança e sei que não gostaria de estar em nenhum outro lugar
Estela faz 11 anos e, a fim de celebrar a data, convida a Nonna para preparar a macarronada. Nonna, claro, aceita, e assim, durante uma noite quente de setembro, está armado o encontro. Somos todos chamados a participar e sabemos, porque moramos em São Paulo há muitos anos, que para chegar ao Morumbi às 7 horas de um dia útil é necessário começar a viagem muito antes disso – em São Paulo, a tarefa de cruzar o rio para lá e para cá, mesmo que por poucos quilômetros, pode levar horas. Me meto no carro de Nininha, que já está lotado mas me aceita – nele, vamos eu, Paulo, Antonio, Nininha, Mel, Bruna e a abençoada Grace, babá das menininhas. Mel e Bruna, ainda pequeninas, aboletam-se nos colos. Paulo, o primogênito, assume a direção, e Antonio, 15 anos, vai a seu lado no assento da frente. Os dois, com quase 1,90 metro, não caberiam mesmo no assento traseiro. As mulheres se espremem como podem. Ainda assim, esse aperto é mil vezes preferível a ter que dirigir, e recosto a cabeça no banco, feliz por não ter vindo de carro.
O trânsito, como previsto, está do jeito que o diabo gosta. De tranco em tranco, vamos indo.
No apartamento do Morumbi, Nonna, que chegou ao meio-dia, já coloca a água para ferver. Kiko, Fabiana e as gêmeas também já estão lá porque, médicos, trabalham bem perto. A rigor fica faltando, portanto, o carro de Nininha, no qual agora me encontro. Nos assentos da frente, Paulo e Antonio escolhem as músicas, e Katy Perry vai fazendo a festa. No de trás, tentamos entreter as pequenas, que começam a ficar inquietas. De metro em metro, vamos avançando e orando para que a paz permaneça entre nós – porque pior que o trânsito é o trânsito com duas crianças chorando dentro de um carro lotado.
– Era para ter virado à esquerda ali atrás, Paulo.
– Por que ninguém me avisou?
– Bom, agora vira na próxima.
– É contramão, mãe.
– Não é não. Um carro acabou de virar. Vira, pelo amor de Deus, vamos sair dessa avenida.
– Por que o jantar foi marcado para tão cedo? Quem janta às sete?
– Crianças, Paulo. Crianças jantam às sete. Cuidado, olha para a frente e para de mexer no rádio.
– Eu sei o que estou fazendo, mãe.
– Falta muito?
– Calma, Mel, a gente já vai chegar.
– Quero ir no colo da Grace.
– Fica quieta no colo da Milly mais um pouco. A Bruna está com a Grace.
– Quero ir no colo da Grace.
– Vamos cantar a música do sol, Mel?
– Não. Quero ir no colo da Grace.
– Bruna, vem para o meu colo para a Mel ir para o colo da Grace.
– Não.
– Paulo, coloca o pisca e entra à esquerda.
– Calma, mãe, ainda não dá, olha o que tá vindo de carro do outro lado.
– Era para ter entrado à esquerda lá atrás.
– Então por que não avisou lá atrás?
– Nossa, agora me deu muita fome. Liga pra Nonna, vê se ela já tá esquentando a água.
– Calma, Antonio. Não adianta ligar se a gente tá parado nesse caos.
– Vai ter molho vermelho e branco, a Nonna disse.
– Eu quero o macarrão da Nonna agora.
– Calma, Bruna, já estamos chegando. Antonio, não fala mais desse macarrão até a gente chegar, por favor. Paulo, agora, entra à esquerda, vai, vai, vai.
Olho em volta e vejo aquelas quatro crianças que, logo mais, se juntarão a outras cinco, formando o time de sobrinhos com o qual fui presenteada. Paulo, 19, é o mais velho. Carolina e Larissa, as gêmeas de 1 ano e meio de meu irmão, as mais novas. Volto a deixar minha cabeça cair para trás e fecho os olhos, tentando não prestar muita atenção em Katy Perry.
Enfim, macarronada!
Quando finalmente chegamos, o macarrão está quase pronto. Não são nem 7 horas e daqui a pouco estaremos jantando. Estela, no piano, mostra o que aprendeu naquela semana. Marcelo, na bateria, acompanha. As gêmeas andam para lá e para cá, sempre amparadas por Francisco, 8 anos, passinhos trêmulos, como sempre, são os daqueles que estão chegando ou saindo dessa festa. Tento ficar um pouco em cada grupo, mas quem escolhe onde fico são eles, os sobrinhos, me puxando para lá e para cá, querendo um pouco de mim. Não sei até hoje o que fiz para merecer tanto amor, mas aceito sem questionar. Marcelo me chama para vê-lo tocar bateria, Estela quer mostrar o novo repertório, Francisco, o novo drible, Paulo quer contar da faculdade, Mel e Bruna querem que eu veja o que rola no iPad, Antonio me segue pelo apartamento perguntando de minha mulher, por quem tem adoração, e não se conforma quando digo que ela não virá porque está viajando. Quer ligar para ela, dar uma bronca, e eu incentivo enquanto sou puxada por Marcelo para o canto da sala onde a bateria se encontra. Nonna aparece na sala e avisa que vai colocar o macarrão na mesa. Crianças de todas as idades saem correndo; nada agora é mais importante do que o macarrão da Nonna.
Na mesa, estamos espremidos, mas Nonna exige que fi- quem todos sentados. Olho em volta e vejo aquela família enorme. Um dia, éramos seis. Hoje, somos 18, mas seríamos 20 se Nononna e meu pai não tivessem saído de cena tão cedo. Na mesa, vinho é servido, pratos são repetidos, histórias são contadas, risadas ecoam. Olho em volta e vejo minha turma, meu núcleo de afeto e segurança, e sei que não gostaria de estar em nenhum outro lugar. O telefone toca, e minha
mulher pergunta como estou. Digo que estou bem, mas não tenho tempo para elaborar porque Antonio arranca o telefone de minha mão e começa a conversar com ela. Rendo-me ao amor que existe entre eles e me levanto para alcançar mais um pouco de macarrão. Com o canto dos olhos, vejo meu pai e Nononna encostados na porta da cozinha. Sorrio, sabendo que eles não perderiam aquele jantar, e volto para o meu lugar com a certeza de que poderei viver cem anos que um cantinho naquela mesa será para sempre meu. E, pelo menos por aquele instante, não preciso de outra certeza na vida.
*A carioca Milly Lacombe, 44, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com