Mais complexo do que preto no branco

Crítica, ironia, racismo reverso. O fato é que o termo palmitagem tem causado um incômodo necessário para pensarmos raça e relacionamento

por Dandara Fonseca em

Mesmo estando por fora das discussões sobre negritude, é bem provável que, nos últimos meses, você tenha esbarrado em comentários nas redes sociais em que pessoas negras com companheiros ou companheiras brancas são chamadas de “palmiteiras”. A expressão foi criada dentro do movimento feminista negro brasileiro e era usada, inicialmente, para falar de homens negros que mantinham relacionamentos com mulheres brancas. “O termo palmiteiro surge de uma necessidade de nomear esse comportamento social, discussão que é mais longeva no contexto norte-americano, por exemplo”, diz a bacharel em direito e ativista Winnie Bueno. Mas, afinal, por que essas relações geram tantos questionamentos? 

Winnie Bueno - Crédito: Camila Tuon / Divulgação

“Quando pensamos em relações inter-raciais no Brasil, elas são resultado de um processo histórico de embranquecimento e apagamento da população preta”, diz Roger Cipó, fotógrafo e educador que produz conteúdo sobre afeto negro em suas redes sociais. No século 19, essa união foi estimulada pelo governo como pretexto para o branqueamento da população.

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“O termo palmiteiro surge de uma necessidade de nomear esse comportamento social, discussão que é mais longeva no contexto norte-americano”
Winnie Bueno, bacharel em direito e ativista

Estudiosa do movimento negro, a escritora, arquiteta e urbanista Joice Berth acredita que hoje esses relacionamentos são usados como um exemplo para comprovar que não existe mais racismo no Brasil, e que todas as raças são tratadas com igualdade. “As pessoas apostam nos relacionamentos inter-raciais como uma prova de que a democracia racial, a convivência cordial entre as raças, de fato não só existiu, como ainda existe.”

Joice Berth - Crédito: Alex Batista

Por conta do racismo estrutural existente no país, o padrão de beleza é baseado nas características europeias. Assim, é comum que a população negra desenvolva uma rejeição em relação a sua aparência. “Se você se odeia, é impossível ver beleza em alguém que se parece com você. E aí você vai projetar e construir os seus afetos a partir daquilo que é estabelecido como belo”, diz Roger. É esse um dos principais fatores que fazem com que a usual frase ‘amor não tem cor’ se torne muito mais complexa. 

Escolhas (ou nem tanto)

Os resultados da falta de afeto entre pessoas negras podem ser analisados em diferentes comportamentos. Um dos mais discutidos atualmente — e o que popularizou a expressão palmitagem — é o fato de que o homem negro, principalmente quando ascende socialmente, acaba escolhendo mulheres brancas para se relacionar, vendo nelas um símbolo de ascensão social e de maior aceitação social. “Nós acabamos preferindo esses relacionamentos porque estamos acostumados a achar que o branco é mais bonito, mais limpo”, diz o rapper mineiro Djonga.

Roger Cipó - Crédito: Bruno Nascimento
“A base da minha família toda é feminina e eu tenho três tias que não casaram”
Aline Wirley, atriz e cantora

Os dados mostram que, por conta desse preterimento, há uma maior probabilidade das mulheres negras acabarem sozinhas, fenômeno chamado de "solidão da mulher negra". No último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, mais da metade delas (52,52%) não vivia em algum tipo de união, independentemente do estado civil. É por esse fator que muitas pessoas acreditam que mulheres negras não podem ser consideradas "palmiteiras", já que ter relacionamentos com pessoas brancas não se trata apenas de uma escolha para elas. “É preciso ver em que local está o branco na relação inter-racial, pois o assunto também vai ser atravessado por questões de gênero”, diz Winnie. 

A solidão da mulher negra está mais perto de nós do que parece, é só preciso percebê-la. A atriz e cantora Aline Wirley conta que, por conta da vivência das mulheres negras da sua família, tinha dúvidas se casaria. “A base da minha família toda é feminina e eu tenho três tias que não casaram”, diz. Foram as discussões sobre o assunto que a fizeram enxergar essa problemática que sempre esteve presente em seu cotidiano.

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Hoje, ela é casada com o também ator Higor Rickli, com quem tem um filho, Antônio. “Como mulher negra, sei como é difícil, nesse caso, ser a base da pirâmide e ter ao seu lado o topo dela”, explica Aline. Mas ela ressalta a importância do relacionamento em sua vida: “Eu aprendi que posso ser amada.”

Aline Wirley e Igor Rickli - Crédito: Jeff Porto

Por conta de todos esses fatores, algumas pessoas negras têm optado por manter apenas relacionamentos afrocentrados. Esse é o caso de Roger. O fotógrafo acredita que essa decisão é baseada, sobretudo, em uma questão política, enxergando nesse tipo de afeto uma forma de construir humanidade para pessoas que, por quase 400 anos, foram vistas como objetos. “O amor é uma construção social e, no Brasil, ele foi elaborado de uma forma extremamente violenta para as pessoas pretas”, diz.

“É fácil ver uma mulher negra de pele clara em um relacionamento, tanto com pessoas negras quanto brancas, muito mais do que uma retinta”
Joice Berth, escritora, arquiteta e urbanista

Joice, porém, aponta que essa pode não ser uma solução absoluta, pois, segundo ela explica, mesmo levantando a bandeira de que pessoas negras partilhem os mesmos problemas, os mesmos preconceitos, os homens negros podem acabar repetindo dentro desses relacionamentos a mesma lógica excludente que a branquitude pratica. “Os homens negros podem priorizar mulheres negras que tenham a pele mais clara e características europeizadas, conservando assim o problema da solidão da mulher negra de pele retinta.” 

Entra aí outro ponto importante das discussões em torno da negritude: o colorismo. O conceito, criado em 1980 nos EUA, é usado para mostrar as diferentes formas de preconceitos sofridos pela população negra. Quanto mais escura a cor da pele e mais traços negros a pessoa possuir, menos aceita pela sociedade. “É fácil você ver uma mulher negra de pele clara dentro de um relacionamento, tanto com pessoas negras quanto brancas, muito mais do que uma mulher retinta”, afirma Joice.

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Djonga - Crédito: Divulgação

A solução para não manter essa lógica, segundo Roger, vem da troca da visão ocidental que temos do que são os relacionamentos para a que foi herdada das tradições africanas. “Acredito que, com toda essa filosofia ancestral que herdamos da África, nós podemos inclusive ensinar o mundo como amar de forma humanizada”, diz.

Incômodo necessário  

Tanto dentro quanto fora dos relacionamentos inter-raciais, a ausência de um debate consistente é uma das principais causas do problema. Joice observa que, quando surgem questionamentos sobre o tema nas redes sociais, as pessoas brancas costumam se afastar, principalmente por um sentimento de culpa. “Não é exatamente a culpa que tem que ser o produto dessa conversa”, explica. “Não é sua culpa, não foi você que criou, mas é a sua responsabilidade trabalhar para que ele seja minimizado até que ele seja erradicado.” 

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“O que antecede a transformação é o incômodo. Precisamos nos incomodar e nos deslocar dos lugares, romper essas verdades absolutas”
Roger Cipó, fotógrafo

A falta de iniciativa em participar da discussão tem conexão com a delicadeza do tema, que desperta preocupação em quem milita também pela forma rasa como as coisas são discutidas na internet, por exemplo. Neste cenário, o que é debatido acaba colocando os homens negros, que também sofrem com o racismo presente na sociedade, muitas vezes como os grandes vilões. “Na verdade, os comportamentos desses homens são decorrência do racismo. E aí você provoca uma reação que não ajuda em nada”, diz Joice. A opinião da arquiteta vai ao encontro do que pensa Winnie, que também acredita que o uso do termo na internet pode acabar esvaziando seu conteúdo político. “Você deixa de ter uma reflexão aprofundada sobre o problema que está por trás desse termo e fica só o termo com uma utilização meramente bélica.” 

Para o fotógrafo Roger Cipó, essas pessoas que enxergam a expressão palmiteiro como uma ofensa, na verdade, não entendem que a discussão não parte da individualização, mas sim do fenômeno social. “O sistema produz o indivíduo e o indivíduo reproduz o sistema”, diz. “É um movimento que tem o objetivo de repensar como os afetos são estabelecidos e como o racismo atravessa a construção deles no Brasil.” Para o fotógrafo, o incômodo e a provocação que advém do termo são partes importantes do movimento. “O que antecede a transformação é o incômodo. Nós precisamos nos incomodar, precisamos nos deslocar dos lugares, romper essas verdades absolutas e apresentar outras narrativas para as pessoas.”

Créditos

Imagem principal: Reberson Alexandre

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