O lançamento da Netflix, sobre um grupo de estudantes negros enfrentando o racismo estrutural de uma universidade americana elitista, deu menos muito o que falar do que deveria
Cara Gente Branca (Dear White People) estreou na última sexta-feira (28) na plataforma de streaming Netflix e seu lançamento deu menos o que falar do que deveria. A série é sobre um grupo de estudantes negros enfrentando o racismo estrutural de uma universidade americana elitista, ou seja: majoritariamente frequentada por pessoas brancas. Em seus dez episódios, o lançamento retrata a conjuntura racista em que vivemos e evidencia esse fato mediante o uso da representação tanto de micro quanto de macroagressões.
“Se suicídio e racismo são temas urgentes, por que o frenesi à estreia de '13 Reasons Why' foi tão maior que à de 'Dear White People'?”
Carolina Moreira
Logo após a estreia, comentei sobre a importância do protagonismo negro da série no texto "Cara Gente Branca: uma luta pela igualdade de direitos", mas depois da publicação uma discussão muito importante levantada no texto "Dear White People e o silêncio ensurdecedor da internet" me chamou a atenção. Gabriela Moura, a autora do texto, tocou em um ponto delicado e devastador: por que o frenesi criado nas redes sociais para a estreia de 13 Reasons Why foi tão maior que a estreia de Cara Gente Branca? Se os dois temas (o suicídio e o racismo) são urgentes, qual seria o motivo da repercussão desigual?
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Neste aspecto, podemos perceber duas nuances. A primeira se refere ao próprio engajamento dos espectadores em relação à série (no caso de 13 Reasons Why, por exemplo, houve uma comoção muito grande com tags no Twitter, depoimentos em todas as redes sociais, jornais e revistas repercutindo o tema). A segunda nuance é mais institucional e diz respeito à divulgação da Netflix, que está sendo bem fraca (em comparação às outras séries já lançadas) e não apostou em estratégias de publicidade nacional, tática usada em shows como Orange is The New Black, The Get Down, Santa Clarita Diet e 13 Reasons Why.
Cara Gente Branca toca em feridas abertas e extremamente dolorosas. Se para alguns é difícil aceitar que somos uma sociedade estruturalmente racista, imagine só como é a vida da nossa população negra cujas vivências racistas são cotidianas, sejam elas escancaradas ou não? E ainda que a série se trate de uma realidade norte-americana, diversas de suas questões trazidas pela narrativa podem ser facilmente percebidas na realidade brasileira.
Toda essa polêmica deixa muito clara a real necessidade de discutir questões relacionadas ao racismo em nosso país. Por isso, levantamos 10 temas importantíssimos abordados por Cara Gente Branca e que podem gerar reflexão, contribuir para a desmistificação do tema e, quem sabe, ampliar a empatia para importantes bandeiras de luta negra.
Racismo estrutural
O racismo não está somente em insultos, xingamentos e violações de direitos claros. O racismo estrutural está em tudo o que nos constitui enquanto sociedade, está na nossa linguagem, nos nossos costumes e crenças. E isso é um tema amplamente abordado pela série durante todos os episódios. Não acho que foi por acaso, inclusive, que alguns dos personagens de mais poder e respeito da série, o reitor da universidade e seu filho, sejam homens negros. Para mostrar que a existência dessas pessoas não comprova a suposta ausência de racismo em que muitos querem acreditar. Todos os personagens negros da série fazem parte de uma universidade que é a elite intelectual americana. Todos altamente educados e aculturados, mas nem por isso imunes à violência policial, ao descaso da administração e até mesmo ao preterimento amoroso. Além disso, a escolha de não mostrar apenas situações em que o racismo se expõe em sua faceta mais explícita, mas também mostrá-lo em microagressões, foi fantástica. Um olhar torto, uma insinuação, um cerceamento brando… Tudo isso está arraigado em nossa cultura e deve ser combatido cotidianamente.
Solidão
A solidão da mulher negra é um tema pesquisado por diversos grupos de estudos país afora e se trata de uma constatação real e devastadora: o número de mulheres negras sozinhas no Brasil é alarmante. Muitos fatores contribuem para o fato: mulheres negras são preteridas por homens negros (para eles estar com uma mulher branca significa uma forma de ascensão) e por homens brancos; são tidas como "mulata-exportação", tendo seus corpos hipersexualizados e desejados apenas para fins sexuais; lideram o número de mães solo, evidenciando a triste realidade do abandono afetivo e também paterno. A temática da solidão é abordada pela série em um episódio focado na personagem Coco (Colandrea) de forma exemplar. A série mostra a personagem sendo preterida e deixa claro que o problema estava no fato dela ser negra.
Colorismo
Colorismo ou Pigmentocracia é o nome que se dá para a discriminação pela cor de pele e é algo muito comum em países que foram colonizados por europeus e que passaram pelo processo da escravidão. De forma simples, podemos definir que quanto menos pigmentada a pele da pessoa negra for, menos racismo ela vai sofrer ao longo da vida. Esse "privilégio" é tema de discussões entre as protagonistas Sam e Coco. Coco, que tem a tonalidade de sua pele mais pigmentada, em um discurso inflamado e sincero explica à Sam, cuja pele é menos pigmentada, que esse fator é decisivo quando situações racistas vem à tona. É claro que as vivências racistas de cada pessoa são únicas e não estamos dizendo aqui que há uma possibilidade de dizer que alguém é "mais negro" do que outra pessoa, mas sempre vale a pena pensar sobre nossos privilégios para construirmos uma realidade menos racista para todos.
Violência policial
A violência policial contra pessoas negras é algo alarmante e que já fez gerar movimentos enormes e conscientes como o Black Live Matters nos Estados Unidos. Trazendo para a realidade brasileira, o número de pessoas negras e brancas mortas em operações policiais é discrepante e Cara Gente Branca soube aproveitar a temática de maneira bem assertiva e tocante em uma das suas cenas mais tensas e angustiantes da temporada.
Empoderamento estético
Não é fácil ser uma mulher negra ou um homem negro e manter-se com a autoestima lá no alto em uma sociedade onde ser branco - ou ter as características definidas como brancas - são exigidas a todo momento. Diversos fatores podem ser abordados neste ponto: a falta de representatividade na mídia, os escassos meios de empoderamento estético e até mesmo o número reduzido de cosméticos e acessórios adequados às realidades negras podem ser apontados como um início de conversa neste assunto delicado. Cara Gente Branca teve a sensibilidade de trazer essa temática à tona com duas de suas personagens: novamente a Sam e a Coco. As transições estéticas pelas quais as duas passam juntamente com as questões advindas desses procedimentos são exibidos ao longo dos episódios e as duas personagens percorrem um caminho interessante para se sentirem bonitas e aceitas.
Apropriação cultural
Este é um tema árido e de compreensão dificultada por desinformações compartilhadas à exaustão pelos espaços da internet. Por ser uma série que se trata da temática do racismo, é claro que a apropriação cultural não seria deixada de lado. Durante uma apresentação artística, Sam e Reggie discutem sobre o quanto aquela expressão se apropriou de diferentes culturas. A cena tem uma tonalidade leve, mas o assunto é sério e que bom que foi abordado.
Militância e cobrança
Ser militante não é tarefa fácil, independente da causa. E isso é mostrado com excelência pela série. Sam é uma ativista que luta no Movimento Negro engajadíssima e que foca seus esforços na construção de uma sociedade mais igualitária, mas ela é humana e é claro que sofre pressões alheias. E é claro também que ela não consegue ser perfeita em sua postura 100% do tempo. Isso é lindo e humaniza a personagem. Dependendo do receptor, entretanto, a mensagem passada pelas cenas que trazem essa realidade à tona pode causar certa estranheza e até um sentimento de que a postura da personagem é "fake", mas quem consegue ser 100% perfeito que atire a primeira pedra.
Mito do racismo reverso
Racismo reverso não existe. Esse é um cuidado que deve sempre ser tomado quando é necessário falar sobre o assunto, para não correr o risco de legitimar o termo. O racismo é um fenômeno social comprovado, explicado e estudado por ciências diferentes como a história, a geografia, a sociologia, a antropologia e o estudo das linguagens. Racismo reverso, por outro lado, é um mito largamente utilizado para expor situações em sua grande maioria singulares (ou seja, que não são coletivas) e pontuais. Cara Gente Branca toca nessa questão quando mostra alunos brancos que não consegue compreender seus privilégios e, de certo modo, evidencia o quão discrepante e injusta são as realidades vivenciadas pelos grupos negros e brancos dentro da universidade.
Relacionamento interracial
A temática do relacionamento interracial é muito bem abordada pela série e, inclusive, coloca em foco uma das personagens mais importantes da narrativa. Após descobrirem que uma das militantes mais ativas do movimento negro da universidade se relaciona afetivamente com um homem branco, seus colegas de militância a pressionam e fazem chacota do assunto. Fica claro que a personagem não queria tornar o fato público justamente pelo medo de publicizar seu relacionamento "com o opressor". Já entre a dinâmica deste casal a série tem a sensibilidade de mostrar que certas concessões e entendimentos são necessários para que a parte branca daquele relacionamento compreenda peculiaridades vivenciadas pela parte negra. De forma sensível a série conseguiu trazer o tema à tona e mostrou que quando o assunto é relacionamento afetivo interracial em uma sociedade estruturalmente racista, nem sempre tudo são flores.
A síndrome do impostor
Não é surpresa para ninguém que pessoas negras muitas vezes precisam se esforçar mais do que pessoas brancas para disputar e conquistar espaços que deveriam ser iguais. Essa pressão faz com que muitas vezes, quando se está no topo ou chegando lá, a pessoa negra se pergunte se ela é mesmo merecedora daquilo, se ela tem mesmo potencial para realizar tal tarefa ou se ela é uma farsa. O sentimento é legítimo e toca no ponto da autoestima das pessoas negras que, como citado no item sobre empoderamento estético, é constantemente massacrada (entre outros motivos) pela falta de representação. Na série, o militante Reggie e até mesmo o galã e bem-sucedido Troy passam por momentos de insegurança sobre suas capacidades. Não compreender que este sentimento faz parte de um contexto é o que embasa um outro mito: o da vitimização.
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