É verdade que falamos pouco sobre suicídio. A série enfrenta o tabu, embora ainda falte cuidado na hora de retratar o sistema opressor que termina nessa trágica realidade
Não é papel da ficção sanar um problema de saúde pública ou evitar temas espinhosos. É talvez aí que 13 Reasons Why começa errando ao ser irresponsável ao tratar do suicídio entre adolescentes.
À esta altura você já deve saber que a série, produzida pela Netflix, conta a história de Hannah Baker, uma colegial americana que comete suicídio. Em vez da habitual carta por escrito, a garota deixa 13 fitas que apontam os culpados pela sua morte. Há, ao menos nas entrelinhas, a intenção de tentar discutir os efeitos colaterais do bullying, homofobia, misoginia e violência sexual em colegial. Esse objetivo é buscado por um bom e velho festival de clichês. O nerd é o cara sensível que não recebe o devido reconhecimento dos pais ou da garota bonita; um dos primeiros bullies é o bonitão vestido com uma jaqueta college e a protagonista é a vítima de bom coração. Os episódios se arrastam e seguem uma lógica comum nos seriados da plataforma. Prolongar a trama e, no fim de cada episódio, adicionar um suspense que continua no próximo episódio. Em uma camada talvez menos fácil de ser identificada, é possível dizer que a trama se trata de um longo tutorial, com 13 passos de mais de 50 minutos, para ensinar como e por que escolher pela própria morte.
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O primeiro argumento é querer apresentar com sobriedade a intenção de Hannah. Ela cria essa espécie de game intrigante, bem calculado, que apresenta o suicídio como o único resultado de uma equação justa. Não é à toa que o jornalismo, a publicidade, o cinema, o rádio e a literatura usam recursos estilísticos semelhantes para atrair o leitor. Recortamos a cronologia, acrescentamos elementos que aproximam você do personagem e apresentamos a parte mais agradável. O resultado desse jogo de atração é a influência.
Após 50 Tons de Cinza, praticantes de BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo) me contaram que calouros pipocam no meio. Com o romance Daqui a Cem Anos, publicado em 1888, milionários norte-americanos começaram a se preparar para o apocalipse descrito pelo autor Edward Bellamy. O livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, de 1774, foi culpado por um surto de suicídios quando publicado na Alemanha. Hannah cria, com seu jogo, um romance com a própria morte. Nesse caso, é inevitável evitar romantizar o suicida.
Nosso cérebro funciona de forma episódica e é por isso que consumimos tanta ficção. Lembramos apenas do mais trágico ao mais alegre. Em 13 Reasons Why, a protagonista elabora um espetáculo chocante com intuito de ficar para sempre na lembrança das pessoas ao redor. É como se ela recortasse episódios trágicos até ter, como produto final mais agradável, a própria morte. O suicídio de Hannah não sugere a cessão de uma dor lacerante, mas de uma vingança bem intencionada. Tudo isso um uma trilha sonora embalada por Hey, Hey de Neil Young (citada na carta de suicídio de Kurt Cobain) e Love Will Tears Us Apart, cantada por Ian Curtis, vocalista do Joy Division que se matou em 1980. No ar paira uma cultura suicida muito hipster para se seguir.
Na vida real, é fato que mulheres vítimas de abusos sexuais tentem se matar mais do que aquelas que não passaram por tamanha brutalidade. 13 Reasons erra, porém, ao sugerir que a maneira para lidar com episódios repetidos de abuso psicológico, sexual e a indiferença seja o suicídio. Outro erro é apresentar um passo-a-passo sobre como cortar os pulsos, como mostrado em um dos episódios. Os diretores defendem a exibição de cenas explícitas*, afirmando que, ao não apresentá-las seria como "esconder" uma realidade. Parece nobre no caso defendido, mas a postura no caso suicida vai contra as indicações dadas pela Organização Mundial da Saúde e se une a outros fatos. Mulheres tentam se matar mais do que homens, apesar de morrerem menos do que eles. O motivo? Não saber como. Mas não se preocupe. A Netflix te ensina a como cortar os pulsos de forma eficaz nessa superprodução bancada por Selena Gomez.
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Dá pra notar que 13 Reasons Why pretende apontar o sistema opressor que pode levar alguém ao caminho trágico do suicídio. Para isso, ela espera que os violentadores vejam a si mesmos na tela e tomem juízo. O alvo é errado de longe, e quem recebe o baque é oprimido. A constrangedora notícia de que o CVV (Central de Valorização da Vida) aumentou em 100% as ligações recebidas após o lançamento foi veiculada como positiva pela própria Netflix. É necessário verificar caso por caso. Será que todos estavam prestes a se matar? Talvez haja nesse bolo quem só tenha pensado na própria morte após uma maratona no fim de semana. Existe uma mea-culpa em alguns episódios avisando “Cenas fortes” que, todos nós sabemos, costuma mais atrair do que espantar.
Não é mentira que falamos menos do que o necessário sobre suicídio. Esse tabu prejudica a coleta de dados mais qualificados para criar programas de prevenção. Também é válido dizer que o suicídio se difere de sociedade para sociedade. Existem países na Europa com números surpreendentes, como Hungria (25.8 a cada 100 mil pessoas), Polônia (32.7 a cada 100 mil pessoas) e Lituânia (47 mortes a cada 100 mil pessoas). Com a crise financeira que leva a classe média a pique e com a realidade da violência sexual, o Brasil tem entrado nesse mapa póstumo, com números maiores a cada ano (em 2015, eram 9.9 suicídios a cada 100 mil pessoas).
O que a Netflix faz, querendo ou não, é aproximar milhões de assinantes, de locais e idades diversos (o controle etário ainda é falho na rede) a uma cultura suicida. Inegavelmente, fez com que o assunto voltasse à tona. Em fóruns no Facebook, tópicos estão sendo levantados com ideações suicidas ou pedidos de ajuda. Há psicólogos, pais e novos fãs falando sobre o assunto. Você já trombou com um alerta de textão - existe, até mesmo, uma denúncia de suicídio após o lançamento da série, como relata o crítico cinematográfico Pablo Villaça.
Talvez o maior aprendizado da série seja para os autores de ficção daqui para frente. Ao defender transpor paradigmas com toda coragem, convencimento e liberdade que a ficção tem como poder e dever para mudar a sociedade, o mínimo necessário é assumir a possibilidade de passar uma mensagem equivocada.
Créditos
Imagem principal: Reprodução/Netflix
(Notinha do autor: "No caso, houve a defesa da exibição das cenas de estupro, e não da cena mórbida como a redação deu a entender. O texto foi corrigido levemente para maior compreensão")