Chuta como mulher!

por Milly Lacombe
Tpm #143

Milly Lacombe tenta explicar por que o futebol é, sim, coisa de menina

Milly Lacombe – colunista da Tpm, comentarista esportiva e craque nos gramados – tenta explicar por queo futebol é, sim, coisa de menina

Era uma tarde quente de julho de 2007 quando entrei no Maracanã para ver a seleção feminina de futebol jogar a final dos Jogos Panamericanos contra os EUA. Subindo a rampa do estádio, a mesma que tantas vezes havia subido de mãos dadas com meu pai, comecei a escutar o barulho que a torcida fazia. Ao chegar ao fim da rampa, pude ver as arquibancadas completamente tomadas. Inundada por uma emoção que poucas vezes senti, chorei. E, chorando, voltei no tempo para uma das manhãs mais doloridas da minha vida.

Eu tinha 7 anos e estava jogando bola no recreio com os meninos, enquanto as meninas brincavam de aniversário de boneca. Como eu sempre jogava bola no recreio, e como sempre fui incentivada por meus pais a fazer o que quisesse, não entendi ao ver a imagem da professora, acompanhada da diretora da escola, chegando à beira da quadra. Entendi menos ainda quando chamaram por mim. “Você não pode mais jogar bola”, me disse a mais velha. “Você é menina, e menina brinca de boneca.” Quase arrastada, fui levada para a tal sala onde acontecia o aniversário de uma boneca muito loira e grande. Estava escura porque era a hora dos parabéns. Mais sozinha do que jamais havia estado na vida, sentei num canto e chorei, agradecendo pela escuridão que me pouparia o constrangimento de ser vista.

Não sei bem o que houve, mas o fato é que minha mãe deve ter marchado para a escola e obrigado aquelas mulheres a me deixar jogar bola. No dia seguinte, lá estava eu na quadra, para alegria dos meninos, pequenos seres humanos ainda livres de preconceito.

 

"Jogando bola passei os primeiros anos da minha vida. Poucas vezes fui tão feliz como dentro de um campo"

 

Jogando bola passei os primeiros anos da minha vida – e muitos outros depois dele. E poucas vezes fui tão feliz como dentro de um campo, esperando a bola chegar a meus pés para que eu então decidisse o que fazer com ela, comemorando um gol, gritando por outro perdido, aprendendo a fazer parte de um time, a ter a humildade de deixar o campo e dar o lugar a outro jogador, a fazer um passe perfeito em vez de chutar a gol, a antecipar um passe e, antes de a bola chegar, estar no lugar certo para recebê-la, a tabelar com a pessoa que está a meu lado e estabelecer com ela uma conexão que palavras não alcançam. O futebol me fez saber quem eu era, e quem eu poderia ser; me fez chorar, sofrer, vibrar e me apaixonar – me fez entender que, para fins de formação de caráter, ganhar é delicioso, mas perder é fundamental. E tudo isso antes dos 10 anos. 

Então, quando aquelas professoras tentaram me fazer acreditar que jogar bola era coisa de menino e não de menina elas estavam me privando de flertar com momentos de enorme grandeza e felicidade, momentos que meninos – e meninas – merecem poder experimentar antes de a vida começar a complicar.

Anos depois, ao ver 70 mil pessoas aplaudindo Marta e suas colegas a cada drible e a cada gol e a cada passe, eu chorei. E chorei mais ainda ao notar à minha volta marmanjos com a camisa do Brasil e tendo às costas o número 10 e o nome de Marta. Ver a Marta correr com uma bola nos pés é entender que fazemos parte de uma coisa maior, é se permitir sentir vestígios de divindade em alguém que aparentemente é humano. Por tudo isso, da próxima vez que você escutar alguém gritar para um marmanjo no campo: “Chuta como homem!”, pode lembrar da Marta e de tantas outras meninas que, mundo afora, se permitem jogar, e sugerir que ele troque por: “Chuta como mulher!”.

fechar