Carnaval sapatão
Subimos na boleia de alguns blocos lésbicos do Brasil para entender como as mulheres que curtem mulheres estão ressignificando a presença feminina no Carnaval
Perguntar às mulheres lésbicas organizadoras de blocos de Carnaval qual foi o principal motivo que as levou a criarem seus próprios espaços de folia esbarrou numa questão tão unânime quanto difícil de ignorar. Ninguém se sentia segura para mostrar suas afetividades e carnavalizar nas ruas durante a festa que é, ou pelo menos nasceu para ser, o auge da integração social no Brasil.
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“Antes de o bloco existir, sempre saímos numa turma grande de amigas e, vira e mexe, dava um probleminha na rua. Se uma já ficasse com a outra, em um bar, por exemplo, já dava uma bafafá”, conta à Tpm a DJ Renata Corr, que comanda a festa e o bloco sapa-bi Desculpa Qualquer Coisa, nas ruas do centro de São Paulo.
A cultura do assédio e do estupro – que existe o ano todo, vale lembrar – se intensifica no Carnaval. Além da censura ainda maior à liberdade de ir e vir dos corpos femininos nos espaços públicos, também existe a lesbofobia, a transfobia, a bifobia, a misoginia e o racismo. Conclusão: sair às ruas se torna sinônimo de correr perigo. Afinal, quem quer se arriscar num contexto de excessos quando seu direito à cidade sequer é garantido em dias comuns?
“Depois do nosso primeiro cortejo, no ano passado, recebemos diversos relatos de mulheres que, pela primeira vez, se sentiram estimuladas a sair para curtir o Carnaval, porque antes não estavam à vontade para ocupar esses espaços, não se sentiam representadas”, relatam Fernanda Branco Polse e Isabella Figueira, integrantes do bloco mineiro Truck do Desejo, que saiu nas ruas do bairro Barro Preto, em Belo Horizonte, com uma ala fantasiada com roupas que imitavam vaginas e ânus.
“É preciso colocar vaginas na rua e colocar em pauta a genitália feminina – historicamente tão mal falada, temida e vulnerabilizada. É preciso colocar o ânus na rua também e falar sobre ele com dignidade. É o órgão sexual unissex, que nos une, afinal, quem não tem? A necessidade de trazer o ânus se deu a partir da pauta identitária, afinal somos um bloco de mulheres lésbicas e bissexuais, cis ou trans. E a vagina — apesar de sua luta importantíssima — não está presente em todas ‘as corpas’ e por isso não representa a todas”, explicam.
Lugar de pertencimento e de não-violência
O coletivo Ilú Obá de Min, que se baseia na arte e preservação da cultura de matriz africana e afro-brasileira para empoderar mulheres, é um dos precursores na luta contra a lesbofobia no Carnaval. “Surgimos como bloco em 2005 e não teve estranhamento”, conta Beth Beli, diretora e maestrina do grupo. “Acredito que as pessoas necessitavam de blocos assim. No começo, a gente tinha 30 mulheres. Quinze anos depois, somos 430. Muitas delas são homossexuais ou bissexuais. Além disso, muitas também se descobriram homossexuais no Ilú. Esses blocos são um lugar de tranquilidade para nós, sabe? Tem a ver com esse lugar de pertencimento e de não-violência”, continua Beth.
Já o bloco Toco-Xona, que tem esse nome devido a fama das lésbicas de se apaixonarem depois de serem dispensadas, começou como uma reunião de amigas que só queria se divertir, mas também precisou passar por um processo de emancipação dos padrões e superação de preconceitos para, aí sim, se jogar na brincadeira.
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Antes de se tornar “referência em sapatonice” no Rio de Janeiro, o grupo foi tema de uma reportagem de um jornal de grande circulação que as chamou de “lésbicas safadinhas”, causando pânico entre as integrantes – algumas ainda não tinham se assumido no trabalho ou para as famílias.
“O processo do Toco-Xona foi o mesmo que acontece com a maioria das mulheres lésbicas: um processo de aceitação. Lá em 2008, não se falava em visibilidade ou resistência”, conta Bruna Capistrano, uma das idealizadoras. “Foi preciso se assumir, se reconhecer para só então ter orgulho. Hoje, nosso desfile é transmitido pela Globo News”, diz Bruna. Em 2020, o Toco-Xona espera um público de aproximadamente 15 mil pessoas no Aterro do Flamengo, cartão-postal da cidade, e que foi criado por Lota de Macedo Soares, uma das primeiras arquitetas e paisagistas a assumir sua homossexualidade no país.
“Merecemos seguir bem e ser respeitadas”
Outra mudança positiva e muito bem-vinda que veio junto com o aumento desses blocos foi o reforço da representatividade sapatão. Se, no passado, o estado de desordem típico do Carnaval autorizava a objetificação, a fetichização e o deboche sobre os relacionamentos entre mulheres, hoje a folia é um lugar de ressignificação dos estereótipos. Nomes como Siga Bem Caminhoneira, Truck do Desejo, Siriricando e Ou Vai ou Racha evidenciam que mais do que dirigir seus blocos, as mulheres homossexuais assumiram também o controle das suas narrativas carnavalescas.
“Faz todo sentido o nosso nome. A ideia foi fazer um trocadilho pensando na forma pejorativa como algumas lésbicas que não performam feminilidade são chamadas, apropriando e ressignificando o termo ‘caminhoneira’, no intuito de mostrar que não importa quem somos, merecemos seguir bem e ser respeitadas”, afirma a dupla Leka Peres e Didi Lima, que comanda o bloco Siga Bem Caminhoneira, também em São Paulo.
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Se o caminhão é a imagem alegórica que representa a força da mulher sapatão, o combustível é a música. O empoderamento que esses blocos incentivam também passa pelo repertório. Regido pela maestrina Jaqueline Cunha, a trilha sonora do Siga Bem Caminhoneira tem paródias que estão intimamente relacionadas com o imaginário LGBTQ+, como “Ê Sapatão" (Faraó - Divindade do Egito) e "Ser sapatão é bom demais" (Ara Ketu Bom Demais).
Com uma veia mais pop, a Desculpa Qualquer Coisa vai apostar nos hits Verdinha e Amor de Que, de Ludmilla e Pabllo Vittar, respectivamente, como as prováveis músicas chiclete do Carnaval. Já no Truck do Desejo, as organizadoras apostam em músicas mais antigas, mas que sempre agitam as minas: “Me fala um bloco que toca 'Vá Com Deus', da Roberta Miranda?! É demais ver a ala da bateria e da dança cantando essa super clássico em ritmo de pagodão baiano”, adiantam.
Para quem quiser ouvir clássicos da MPB sapatônica, beijar sua menina na rua ou apenas curtir o Carnaval num espaço seguro e livre de julgamentos, os blocos lésbicos são o lugar. “Sermos mulheres que amam outras mulheres é um ato político. Vamos contra tudo o que é esperado de uma sociedade patriarcal e acreditamos que a nossa potência, juntas, e o nosso amor é muito maior que isso”, avisam as mulheres do Siga Bem Caminhoneira.
PARA NÃO PERDER O CAMINHÃO:
SÃO PAULO
Desculpa Qualquer Coisa
15/Fev - 14h30
Consolação
Ilú Oba de Min
21/Fev - 17h00
Centro
23/Fev - 14h00
Bom Retiro
Siga Bem Caminhoneira
29/Fev - 14h
Rua Rui Barbosa, 453
RIO DE JANEIRO
Toco-Xona
23/Fev - 7h00
Aterro do Flamengo
BELO HORIZONTE
Truck do Desejo
25/Fev - 8h00
Barro Preto
Créditos
Imagem principal: Lorena Zschaber/Divulgação