Mulheres fúteis, altamente sexualizadas e que têm sua história representada pela busca de um marido ou um amor. Ainda pior: a naturalização e a romantização de violências contra a mulher. Esse costuma ser o padrão da representação de gênero nas produções audiovisuais no Brasil e também nos EUA, segundo Fernanda Friedrich, pesquisadora, roteirista e doutora em Literatura com ênfase em Estudos Feministas pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Fã de ficção, Friedrich se incomodava – e ainda se incomoda – com esse retrato das mulheres nas telas. A inquietação motivou uma tese de doutorado que, por sua vez, virou livro, o recém-lançado Uma série de mulheres engraçadas - As protagonistas das sitcons em 70 anos de mudanças dentro e fora das telas.
A autora não só traz essa análise da representação feminina em séries, mas números que retratam com mais precisão as distorções entre os gêneros. Em um levantamento que fez sobre as séries brasileiras de comédia exibidas na TV paga entre os anos 2005 e 2015, das sitcons protagonizadas por homens, 50% tinham como temática o ambiente de trabalho e apenas 4% focavam em aspectos de relacionamento amoroso. Já entre as séries de comédia protagonizadas por mulheres, 44% eram focadas em relacionamentos e apenas 17% eram centralizadas no ambiente de trabalho.
Os estereótipos de gênero aparecem em séries que se tornaram famosas entre os brasileiros, como Os Normais (2001-2003), na qual Vani, interpretada por Fernanda Torres, vivia uma mulher “histérica, fofoqueira e barraqueira”, na análise da autora. Outras críticas se dirigem, por exemplo, à personagem Dona Nenê, de A Grande Família (2001-2014), vivida por Marieta Severo. “A protagonista da série é mais conformada que Lucy [da série norte-americana I Love Lucy], a grande dama da televisão dos anos 1950”, diz.
Mas nem tudo está perdido. Para Friedrich, os movimentos feministas e a sociedade como um todo pressionaram e seguem pressionando por mudanças que ajudam a modificar essas formas de representação. Em entrevista à Tpm, ela falou sobre como as produções evoluíram ao longo do tempo, o limite da piada e da liberdade de expressão e inquietações, como a obsessão pela magreza das atrizes em telenovelas brasileiras.
Tpm. A subrepresentação ou a má representação da mulher tem que efeitos na nossa sociedade? Fernanda Friedrich. As mulheres retratadas na televisão influenciam as que habitam a realidade. Quem assiste mulheres submissas a vida toda tem uma grande chance de acreditar que aquele ali é o papel que ela deve ter. Quem vê um relacionamento abusivo na televisão tem grandes chances de acreditar que aquele é o padrão de relacionamentos. Há diversas pesquisas que apontam como a construção do papel social da mulher sofre influência direta da mídia. Trazer para as telas mulheres que fogem dos estereótipos seculares é uma forma de educar mulheres e homens sobre práticas ultrapassadas, abrindo um novo horizonte de possibilidades para aquelas que antes acreditavam que tinham limitações por causa do seu sexo.
Você escreve que a comédia foi, durante muito tempo, um terreno onde só homens pisavam, já que as mulheres deveriam se restringir ao papel de “delicadas damas”. Como e quando isso mudou? Que mulheres abriram o caminho para essa mudança? O teatro por muito tempo excluiu as mulheres. A comédia colocava homens de vestido para manter o elenco masculino. A literatura ainda limita as autoras. A maioria dos homens não tem o hábito de ver protagonistas mulheres, eles se acostumaram com homens no protagonismo e quando tem uma mulher lá eles perdem o interesse mais facilmente. Para eles é difícil criar conexão. Quanto mais mulheres aparecerem nas telas, mais eles vão treinar essa habilidade de empatia que nós mulheres fomos obrigadas a desenvolver por lidar desde sempre como o protagonismo masculino. Quando Nair Belo ganhou suas próprias séries nos anos 1980, ela ajudou a mostrar como uma mulher poderia ser engraçada. Lucy fez isso nos anos 1950 nos EUA. Ainda assim, essa ideia de que mulher não é engraçada ainda é muito forte. Existe uma associação muito grande da mulher sempre ter que ser perfeita, linda, esbelta e geralmente a comédia está ligada a alguém que não é atraente e que se comporta mal. Tem muita gente que só leva a sério uma comediante se ela for gorda, como se no momento em que ela deixa de ser magra ela perdesse o sex appeal. Ainda há muito o que ser desconstruído na visão sobre quem é engraçado. Para resumir, ainda é difícil ser mulher artista. Ainda é difícil ser mulher. Mas ao longo do tempo a gente foi lutando, o feminismo nasceu, evoluiu e hoje eu estou aqui respondendo essas perguntas. Há 50 anos isso provavelmente não seria possível.