Matrix gastronômico

por Milly Lacombe

Convidamos o americano Anthony Bourdain e o brasileiro Alex Atala para um bate-papo e descobrimos que existe um universo paralelo nos bastidores dos restaurantes. Você tem estômago para a verdade?

#BaúDaTpm:  Em 2003, Anthony Bourdain e Alex Atala nos contavam sobre o que rola nos bastidores dos restaurantes. 

Do lado de dentro, fogo, armas afiadas, muito palavrão e um exército de homens em ponto de ebulição. Do lado de fora, música suave, louças finas, sofistificação. Se você nunca parou para pensar no que acontece na cozinha de um restaurante estrelado, prepare-se. Para começar, saiba que o cara que está no comando do lado de dentro é um rebelde, um outsider, mesmo que seja fluente em francês e conheça mais de cem tipos diferentes de tempero. Quase sempre com a barba por fazer e as mãos cheias de cicatrizes, eles são tão arrogantes quanto sedutores.

Resolvemos provocar um encontro de titãs, dois símbolos de uma classe, camaradas que nunca haviam conversado porque vivem em países diferentes. O paulistano Alex Atala há quatro anos consecutivos é eleito melhor chef de cozinha contemporânea do país. Este mês, vai lançar seu primeiro livro, como faz todo cozinheiro-celebrity que se preza. Desde que publicou Cozinha Confidencial, best-seller em que conta todos os podres que acontecem nos bastidores dos restaurantes, o americano Anthony Bourdain mal aparece nos Les Halles, bistrô de sua propriedade em Nova York. Mas ganhou um programa de TV e agora vive rodando o mundo para divulgar seu segundo livro, Em Busca do Prato Perfeito, que conta suas peripécias provando iguarias exóticas nos quatro cantos do planeta.

Apesar de terem sido criados em países diferentes, a semelhança no discurso dos dois impressiona já nos primeiros minutos de conversa. “Acho que todo chef se sente inapto para fazer parte da sociedade. Em geral, fomos crianças solitárias e hoje formamos uma subcultura. Mesmo com status de celebridade, jamais seremos como nossos clientes”, diz Atala. “Trabalhamos de pé até altas horas da madrugada e nossas mãos vivem queimadas. Não tem nada de célebre nisso. Quem procura emprego na cozinha quer escapar de alguma coisa, isso é o que nos une. Quem entra nesse negócio para virar celebridade é um idiota”, fuzila o americano.

Em pouco tempo, começo a enxergar esses dois homens como uma espécie bizarra e bem-sucedida de foras-da-lei. Eles têm um vocabulário próprio, os mesmos trejeitos e se sentem verdadeiros czares no fogão. Com a palavra. Atala: “Lá dentro [aponta para a cozinha de seu restaurante] está minha brigada, os homens que, noite após noite, vão à guerra comigo”. A guerra a que ele se refere é a rotina diária de preparar, servir e agradar a clientela. “Somos testados diariamente. Não adianta fazer tudo certo e errar um prato. Qualquer deslize pode ser fatal”, exagera Bourdain.

Modelo militar? Você nem imagina. “Quando consegui meu primeiro emprego, comprei um jogo de facas novinho”, conta Atala. “Ao manuseá-las, terminei me cortando. O chef, vendo que eu estava machucado, decidiu que naquele dia eu seria o encarregado de espremer limão.” Bourdain também tem sua história de maus-tratos. “Existe um chef famoso que não gosta de ver a porta do fogão aberta. Se o assistente dá bobeira, ele chuta a porta no braço do infeliz.” Eles juram não concordar com o meu método abusivo de comandar uma cozinha, mas dizem que todo grande chef teve um maluco como mentor. “Existe uma tradição de brutalidade nos restaurantes, mas não é só sadismo. A vida ali segue uma rotina militar, a pressão física e mental é constante. É preciso saber se o aprendiz dá conta do recado”, diz o americano.

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 Tortura com os novatos

A forma mais comum de se fazer isso é arruinar a vida do calouro na primeira semana de trabalho. “O objetivo é tentar fazer o novato chorar, descobrir até onde ele aguenta”, explica Bourdain. Seria esse sistema bélico o motivo de haver tão poucas mulheres na profissão? “Já vi garotas numa cozinha serem mais duras do que muito homem”, diz Atala. Para ele, as mulheres são minoria porque não se sentem atraídas por esse submundo. “Elas preferem não participar de uma tradição mácula de brutalidade, acham que tanta crueldade é besteira. Mas as que querem se infiltrar são duras na queda.”

Infiltrar é a palavra. Os homens do lado de lá se consideram quase uma irmandade. “Somos membros de uma casta internacional de culto à dor. Compartilhamos os mesmos tipos de frustração e prazer”, afirma o americano. Atala reforça o estereótipo de que eles são uma espécie à parte: “A melhor sensação do mundo é, sábado à noite, depois que o último cliente sai, sentar no bar com seus auxiliares para beber e jogar conversa fora”. Bourdain resolve provocar o paulistano e perguntar à queima roupa: “Alex, você prefere jantar com uma mulher ou com um grupo de chefs?”. A resposta vem acompanhada de um sorriso conspiratório: “Com os chefs, sem dúvida”. Enquanto os dois se deliciam com a resposta, quem se sente uma outsider é você.

Mas afinal como esse bando de machos semi-selvagens consegue ser tão sedutor? Em primeiro lugar, homem que cozinha ganha automaticamente bônus com as mulheres. “Estamos muito antenados com o que dá prazer às pessoas, e isso atrai. Tem algo muito cool no homem que cozinha bem. Ao mesmo tempo em que nos comportamos como broncos, damos vida a pratos graciosos. Esse mix é interessantíssimo”, diz Bourdain. Seriam os chefs amantes perfeitos? Não necessariamente. “Nem todo cozinheiro é bom de cama, mas ele tem de gostar de sexo. Caso contrário, nunca poderá cozinha bem” arremata o americano.

Créditos

Imagem principal: Kiko Ferrite/Editora Trip

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