O poder do desconforto

por Milly Lacombe
Casa Tpm #176

O chão sobre o qual pisamos está chacoalhando e é normal nos sentirmos incomodados e zonzos

Caro Paulo,

Uma vez alguém me disse que poemas são como sonhos: neles você coloca o que ainda nem sabe que sabe. Lembrei dessa frase ao entrar na Casa Tpm deste ano e ver o salão lotado enquanto o som dos djembês e das vozes daquelas mulheres negras tão lindas e vestidas de branco elevavam a gente a um lugar de mais beleza e empatia. A emoção que senti ali me fez voltar a 2001, quando você e o Califa decidiram lançar uma Trip para mulheres e a Tpm nasceu.

Talvez vocês não soubessem que sabiam tantas coisas a respeito do universo feminino ou da necessidade que tínhamos de debater questões que precisavam ser arrancadas dos armários porque estavam nos sufocando. Mas o fato é que o caminho da Tpm até aqui foi construído com altas doses desse específico feminino, contido em todas as mulheres e homens que passaram pela redação até hoje.

Mulheres que não se sentiam representadas por nenhum outro meio de comunicação passaram a ter voz, eu entre elas. Afinal, que revista feminina daria, em 2001, espaço a uma coluna com elevado conteúdo lésbico? As desencaixadas, as esquisitas, as fora do padrão, as lésbicas, as negras, as bi, as trans; começamos a contar nossas histórias nas páginas da revista, depois no rádio, depois no site, depois nos canais da Trip. Não é pouca coisa. Nas palavras da escritora americana Ursula K. Le Guin: “Quando nós, mulheres, apresentamos a nossa experiência como a nossa verdade, como verdade humana, todos os mapas se alteram. Surgem novas montanhas”.

E muitas montanhas têm surgido desde então porque, ao subirmos ao topo de uma – como temos feito recorrentemente com pequenas, mas importantes vitórias contra o machismo, o racismo e a lgbtfobia –, a gente enxerga novas montanhas que precisam ser desbravadas. E a aventura segue porque não nos é dado o privilégio de parar de lutar. A questão não é, como pensam alguns, que o mal vence. É que, apesar de inúmeras vitórias do time oposto, o mal nunca acaba. Então a gente segue contando nossas histórias para que outras mulheres se identifiquem com elas, entendam que não estão sozinhas e que o problema que elas acham ser delas é, na verdade, social e nasceu com o patriarcado há 5 mil anos.

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“Histórias salvam a sua vida”, escreveu a feminista americana Rebecca Solnit. “Histórias são a sua vida. Nós somos as nossas histórias.” E se antes essas histórias eram contadas apenas por homens, ainda que algumas mulheres brancas tenham conseguido furar a bolha, hoje são as feministas negras que estão abrindo novos caminhos. O feminismo branco dos anos 60 praticamente as excluiu, mas nessa nova onda, que elas tão brilhantemente protagonizam, estamos sendo chamadas a nos juntar.

O caminho para a liberdade passa por contar nossas histórias. Não há outra saída para um mundo menos injusto. “Uma pessoa livre conta a sua própria história” (ainda Solnit). Uma sociedade saudável teria espaço para todas as histórias porque são elas que nos conferem dignidade, identidade, valor.

Muita coisa mudou no mundo desde o lançamento da Tpm, há 17 anos. À observadora menos atenta pode parecer que o caos está maior do que jamais foi, e uma análise simplista confirmaria o veredicto. Mas esse caos é bem-vindo. É muitíssimo bem-vindo que homens brancos e heterossexuais estejam se sentindo desconfortáveis, uma sensação completamente nova para o único grupo de seres humanos que jamais havia se sentido assim. O grupo que, até este ponto da história, era neutro (nas palavras da comediante australiana Hannah Gadsby).

Instabilidade

O desconforto faz parte das grandes transformações de consciência e quem não estiver desconfortável ou confuso não está prestando atenção. O chão sobre o qual pisamos está chacoalhando e é normal nos sentirmos incomodados e zonzos. Verdades como as que conhecíamos estão sendo desconstruídas em nome de uma sociedade mais humana. Estamos todos infectados de ignorâncias e de preconceitos porque doenças como o machismo, o racismo e a homofobia são estruturais, o que significa dizer que estão internalizadas em todos nós. A cura desses males vem pelo afeto e pela disposição em escutar histórias nunca antes contadas.

Lições estão vindo de todos os lados. As trans e os trans ensinam, as travestis ensinam, as prostitutas ensinam, as negras ensinam, as lésbicas ensinam, as e os bis ensinam, a periferia ensina, as comunidades ensinam. Nossas histórias ensinam. Toda história ensina. Basta escutar com a disposição de quem entende que mudanças precisam ser feitas porque já não existe mais espaço para desumanizações, para humilhações, para intolerâncias. Não há outro caminho para um ambiente de liberdades.

Liberdade é, por sinal, um conceito mal compreendido. Não é fazer o que a gente quiser, na hora que bem entender. Liberdade envolve atenção, disciplina, respeito. Envolve a capacidade de enxergar o outro. Liberdade de expressão, por exemplo, não inclui lutar pelo direito de ser homofóbico, machista, racista. Liberdade de expressão exige responsabilidade sobre o que se diz, refletindo se sua expressão não estaria desumanizando alguém ou um grupo. Toda liberdade contém obrigatoriamente o olhar sobre o outro porque ninguém existe sozinho.

Então, essa época de caos e completo desconforto é necessária para que nos reorganizemos enquanto sociedade. Não vai ser fácil nem virá sem tristezas e perdas. Mas, deste ponto onde chegamos, não há mais volta; nos resta apenas encarar.

Quando a vida ficar difícil talvez valha pensar que, às vezes, para seguir na batalha basta escutar. Escutar o que dizem aquelas e aqueles que estão à margem. Escutar o que dizem aquelas e aqueles cujas vozes foram, por séculos, silenciadas. É hora de deixar que essa turma nos guie porque elas e eles carregam dores que jamais alcançaremos, mas com as quais podemos nos identificar porque o que acontece a um único ser humano acontece a todos nós.

Para quem, como eu, ainda está confuso, termino com a história do filósofo americano que, depois de assistir à palestra de um monge Shinto, falou a ele: “Gostei muito do que disse, mas não entendi sua teologia, não entendi sua filosofia”. O monge pensou por alguns minutos e então respondeu: “Não temos uma teologia. Não temos uma filosofia. Nós dançamos”. Bora dançar juntas e juntos essas transformações.

Créditos

Imagem principal: Sandra Jávera

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