por: Ministério Público do Trabalho + ONU Brasil

Além das fronteiras

Subnotificado, cruel e bilionário, o tráfico de pessoas é um crime que se mantém oculto e precisa do engajamento de toda a sociedade para ser erradicado

Ilda Ayala Menchaca, na época com 35 anos, viu a chave da porta da oficina de costura clandestina pendurada na parede e tomou a atitude que há muito rondava seus pensamentos: fugiu. Era ali que ela vinha sendo mantida presa há 13 meses. Já era o segundo dia consecutivo que suas filhas pequenas iam para a escola sem comer nada. O menino mais velho, de 16 anos, assim como os pais, vivia preso na oficina em que trabalhavam exaustivamente. Sem esperanças de conseguir melhorar as condições da família, que tinha deixado a Bolívia acreditando em boas oportunidades de trabalho no Brasil, Ilda saiu correndo pelas ruas do Pari, em São Paulo, em busca de ajuda.

Ela entrou na Unidade Básica de Saúde do bairro e procurou pela dentista que tinha atendido sua filha caçula algum tempo antes, uma das únicas pessoas com quem interagiu durante esse tempo trabalhando na oficina. Ali, conseguiu os contatos do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami), que a acolheu e recomendou que não voltasse mais para o trabalho. 

Alguns dias depois, Ilda conseguiu falar com Omar, seu marido, que seguia trabalhando em condições análogas à escravidão na oficina clandestina, e avisou onde estava e que denunciaria o cunhado de seu genro, o homem que os havia enganado e explorado durante o último ano. Há cinco meses, a família conseguiu, com ajuda da assistência jurídica do Cami, receber uma indenização pelo tempo em que foram explorados, alugar uma casa e recomeçar a vida em São Paulo, agora em liberdade. 

Histórias como a dos bolivianos Ilda e Omar no Brasil são, infelizmente, muito comuns. Mas nem todas encontram um final feliz. Em 2012 e 2013, foram registrados 15 flagrantes de trabalho escravo em confecções de costura, nos quais 154 trabalhadores foram libertados. "Só este ano, atuamos em 53 casos de trabalho escravo e tráfico de pessoas", diz Carla Aguilar, assistente social do Cami. 

A exploração de trabalhadores imigrantes é um dos principais fins do tráfico de pessoas, um problema subnotificado, cruel e que movimenta bilhões de dólares no mundo inteiro. Esse crime atinge o Brasil de diversas maneiras e tem a desinformação como aliada. "É um problema que se mantém oculto, até mesmo nas estatísticas. As pessoas não acreditam que essa realidade existe e acabam não denunciando, temos poucos dados sobre isso no país. Quebrar o silêncio é um passo crucial", explica Gustavo Accioly, procurador do Ministério Público do Trabalho. 

O uso do termo "tráfico" pode sugerir grandes e complexos esquemas internacionais de sequestro, mas a verdade é que este drama é muito mais comum do que parece. Estima-se que, em todo o mundo, 2,4 milhões de pessoas sejam vítimas do tráfico de pessoas todos os anos. A procuradora Tatiana Bivar explica o que, afinal, configura esse tipo de crime: "Precisa existir um ato, um meio e uma finalidade. O ato é a movimentação de uma pessoa de um local para outro, seja no mesmo país ou para fora. Estamos falando de recrutar, aliciar e transportar, mas também de acolher uma pessoa que está longe do seu local de origem. O meio é o controle de uma pessoa sobre outra, que pode se dar com ameaças, uso da força, coação moral, psicológica, rapto, engano, abuso de autoridade ou em decorrência de uma situação de vulnerabilidade da vítima. A finalidade pode ser para trabalho escravo, exploração sexual, adoção ilegal de crianças e adolescentes, servidão doméstica e até remoção e venda de órgãos".

O Brasil é um país de dimensões continentais e realidades muito distantes dentro de suas fronteiras. Somos origem, trânsito e destino do tráfico de pessoas. Muitos brasileiros são submetidos a trabalhos forçados no exterior e, ao mesmo tempo, recebemos aqui vítimas, em sua maioria bolivianos, peruanos e paraguaios, que enfrentam jornadas exaustivas e condições insalubres de moradia, além da dívida ilegal. 

A discriminação, a pobreza, instabilidade social, política e emocional são alguns dos fatores que transformam alguém em potencial vítima do tráfico de pessoas. "No caso dos bolivianos, por exemplo, há sobreposição de carências sociais. Eles não têm perspectiva de futuro em seu país de origem e há ainda um processo de xenofobia. É impressionante o grau de vulnerabilidade dessas pessoas quando chegam aqui", conta Tatiana, que já participou de diversas operações do Ministério do Público do Trabalho, nas quais esquemas de tráfico de bolivianos envolvendo a indústria têxtil foram desmascarados. 

Vítima, eu?

Um elemento comum aos casos complica a resolução dos crimes: em quase todas as situações, as vítimas demoram muito tempo até entenderem que estão sendo exploradas. "Ouvimos de muitas pessoas que elas não são vítimas porque concordaram com a viagem, vieram porque quiseram. É um crime perverso, a pessoa se sente culpada e envergonhada, se sente ingênua. A maior dificuldade que o Estado tem para atuar é o fato de a própria vítima não se reconhecer como tal, então ela não denuncia", explica Tatiana.

Penélope Jolie só entendeu que o terror que viveu na Europa foi, na real, uma consequência de tráfico de pessoas muitos anos depois de ter superado sozinha a situação. Em 2004, ela topou uma proposta que marcaria sua vida: uma cafetina disse que pagaria os custos de sua viagem para o continente e, lá, trabalhando como garota de programa, conseguiria em três meses quitar essa dívida e então estaria livre para seguir seu caminho como bem entendesse.

"As coisas não aconteceram desse jeito. Metade de tudo que eu ganhava ia para ela. A minha parte eu usava para pagar a dívida e me restavam dez euros por semana, eu mal conseguia sobreviver, só vivia para trabalhar", lembra. Depois de um ano sendo explorada, Penélope entrou em depressão. Passou dias vagando sozinha pelas ruas, até que conseguiu telefonar para amigos no Brasil, que arcaram com os custos de seu retorno. "Só este ano, participando de um evento do Ministério Público do Trabalho, entendi que fui vítima de um crime. Nunca denunciei, sempre me culpei", conta.

"Pouco importa se a vítima concorda com a situação. Juridicamente, a gente entende que esse consentimento não é válido, ela não é livre, a decisão sempre é decorrente de uma situação de controle. Esse tipo de tráfico, com pessoas trans, é dos mais cruéis. É um momento muito forte quando elas se compreendem como pessoas exploradas", conta Tatiana. Para mulheres trans, como Penélope, a exclusão social que marca sua existência é um fator crucial para a maneira como se desenrolam os casos de tráfico e exploração sexual. 

"O trabalho é essencial para a construção da identidade de qualquer pessoa. E, em geral, as pessoas trans estão afastadas da possibilidade de escolha, então aceitam o que parece ser a única alternativa. Os exploradores acabam sendo percebidos como alguém que, ao menos, as enxerga. É preciso ajudá-las a encontrar novas alternativas, e não apenas exigir que larguem tudo", diz Alexandre Pellaes, mestre em psicologia do trabalho pela Universidade de São Paulo. 

Questão de gênero

Apesar da falta de estatísticas confiáveis no Brasil, a percepção do Ministério Público do Trabalho é de que o número de pessoas traficadas está crescendo. Além disso, está claro também que, além da condição socioeconômica, a questão do gênero é definitiva. 

María Rosa Nina Sinani sentiu na pele o machismo quando, com dois filhos pequenos, deixou La Paz, capital da Bolívia, de ônibus, e veio para São Paulo, acreditando em promessas feitas pelo próprio irmão de que encontraria aqui trabalho e remuneração superiores às que existiam em seu país. Os primeiros momentos foram de terror psicológico. Ouviu que, por ter filhos, não tinha utilidade e que teria que viver nas ruas. Disseram que tirar os documentos brasileiros seria impossível, e que, quando a polícia a pegasse, iria prendê-la e separá-la das crianças.

"Eu não sabia o que pensar. Fiquei muito desesperada, não tinha dinheiro nem  para comprar remédio para as crianças, que estavam doentes por conta da mudança do clima. Tive que aceitar tudo", se recorda. Depois de oito meses sendo explorada em uma fábrica clandestina no Brás, ela conseguiu encontrar em São Paulo parentes que a ajudaram a escapar.

A porta de saída

"Estou conseguindo reconstruir minha vida. Em abril deste ano, participei de aulas de empreendedorismo, entendi como precificar meu trabalho e avaliar quando vale a pena aceitar os serviços", explica Maria. A capacitação das vítimas é um dos caminhos mais importantes do combate a esse tipo de crime. Promovida pelo Ministério do Público do Trabalho, a campanha #TodosContraOTraficoDePessoas #SomosLivres está realizando, entre julho e agosto deste ano, debates, audiências públicas e workshops para turmas compostas de um público em situações de vulnerabilidade. 

"Passar meu conhecimento e minha experiência para pessoas que precisam e querem entender mais sobre o mercado de moda e internet é muito importante e enriquecedor", diz a influenciadora Camila Coutinho, uma das convidadas da campanha para os workshops. "Oferecemos esses cursos de capacitação para que essas pessoas tenham alguma visibilidade, fortaleçam a autoestima e consigam ingressar no mercado de trabalho. Precisamos ter consciência de que é impossível erradicar o ciclo perpétuo da pobreza sem a garantia dos direitos coletivos de uma sociedade democrática", diz o procurador Gustavo Accyoli. No dia 21 de agosto, no Auditório Ibirapuera, um evento aberto ao público marcará o encerramento da campanha e contará com um espetáculo teatral baseado em histórias reais de vítimas de tráfico, além de exposições fotográficas.

"Precisamos assegurar à sociedade brasileira um mercado de trabalho digno, decente, e com mais respeito aos direitos universais. Que se tenha liberdade de escolher a profissão, que não haja trabalho escravo, que não haja tráfico de pessoas, que não haja trabalho infantil, que se preserve a segurança e a saúde do trabalhador", pede Accyoli. Para denunciar situações de tráfico de pessoas e exploração do trabalho, você pode ligar para os números 100 e 180, ou acessar o site do Ministério Público do Trabalho.

 

Créditos

Imagem principal: Caio Palazzo

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