As cidades brasileiras favorecem cada vez menos o ”andar a pé”. Esse pesquisador da USP mostra como isso está se tornando um problema de saúde pública
Enquanto crescia, Thiago Hérick de Sá ouvia histórias de seu avô. Em uma delas, sua mãe contava: “Sempre que tinha de ir à cidade, ele gostava e fazia questão de ir a pé. O problema é que os carros que passavam pela estrada insistiam em oferecer carona. Como recusar favor por aquelas bandas era desfeita, toda vez que o velho Ribamar ouvia o barulho do motor não pensava duas vezes: se escondia no mato." O feito do avô marcou Thiago, e a história foi escolhida para ser a epígrafe da sua tese de doutorado, Como estamos indo? Estudos do deslocamento ativo no Brasil, concluída em 2016 na Faculdade de Saúde Pública da USP, em São Paulo. Em uma série de estudos — alguns deles feitos em parceria com pesquisadores de Austrália, China, Estados Unidos, Índia e Inglaterra —, ele mostra como as coisas mudaram: do tempo de Ribamar pra cá, a população brasileira não apenas está andando menos, como também está com a saúde comprometida por conta disso.
“A gente tem três enormes problemas, que são a saúde, o ambiente e o aquecimento global. Eles vão bater na nossa porta muito em breve, mas acho que esse sentido de urgência ainda não calou fundo em quem governa e toma as decisões”, diz Thiago. Como efeito, vemos o desenvolvimento urbano caminhar cada vez mais na direção contrária. A motorização contínua das cidades é um exemplo. Apenas nos últimos 10 anos, a frota do Estado de São Paulo passou de 15 milhões de veículos, em 2006, para 28,3 milhões, em dezembro do ano passado, como mostra o Denatran. Só na capital, o número chega a 7,8 milhões, segundo o Detran paulista (sem contar veículos de fora que passam pela cidade diariamente). O aumento da frota também está longe de ser proporcional ao crescimento da população: de acordo com dados da Fundação SEADE, a taxa de crescimento anual do Estado é de apenas 0,85%.
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Um das consequências mais óbvias desses dados está no ar. Como mostramos nessa reportagem, a maior parte da poluição atmosférica encontrada nas principais grandes cidades do mundo é oriunda da frota de carros, um problema que já causou a morte de 62 mil brasileiros somente em 2013.
Apesar dos dados assustadores, o pesquisador afirma que o ar não é uma desculpa para as pessoas deixarem de caminhar. “Em comparação aos efeitos da poluição, o estudo mostra que o benefício de caminhar e pedalar é positivo em níveis muito altos. Em São Paulo, por exemplo, a poluição do ar só vai superar os benefícios da atividade física com 15, 16 horas diárias de exposição, coisa que nem mesmo um courier faz.”
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O fato de estarmos andando menos e dirigindo mais já tem seus reflexos percebidos no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Entre esse público mais novo, constatou-se, para além da redução de atividades físicas no dia a dia, uma aceleração no processo. “O nível de redução que a gente encontrou na região metropolitana de São Paulo entre os anos de 1997 e 2007 é a mesma encontrada de 2007 à 2012”, diz Thiago. De acordo com o pesquisador, para além da diminuição de práticas físicas contribuir no aumento da obesidade e taxas de sobrepeso, o dado sugere implicações diretas no processo educacional dos mais jovens. “A questão da mobilidade independente é fundamental para a formação. Uma criança que só vai da escola para casa, da casa para a escola e de vez em quando vai na casa da tia não possui o mesmo grau de educação do que uma que vive a cidade.”
Por uma cidade de encontros
Diante de tantos problemas, andar a pé se comprova como solução. No contexto dos estudos sobre mobilidade urbana, podemos traduzir “andar a pé” como “deslocamento ativo”, ou ainda “atividade física como forma de deslocamento” — o que inclui, além da caminhada, o uso de skate, patins ou bicicleta para a realização de tarefas diárias, como ir ao trabalho ou à escola. Como mostra o estudo de Thiago, um aumento em 24,1% do deslocamento ativo na cidade de São Paulo, por si só, reduziria em 4,9% a emissão de poluentes advinda de veículos automotores. Como consequência direta, calcula-se uma queda de 7% nos casos de doenças cardiovasculares e de 5% no de diabetes tipo 2 registrados na população local.
“Esses problemas vão bater na nossa porta muito em breve, mas acho que esse sentido de urgência ainda não calou fundo em quem governa”
Thiago Hérick de Sá
No cenário atual, a maior taxa de deslocamento encontra-se entre a população mais pobre. Isso, porém, não significa que ele necessariamente se qualifique como ativo, já que, apesar de percorrerem grandes distâncias para chegar aos seus destinos, muitas dessas horas são despendidas no transporte motorizado — seja ele público ou particular. É por isso que a tese de doutorado aponta que, apesar do debate sobre mobilidade urbana ter ganhado destaque nos últimos anos, é necessária uma mudança ainda maior para que haja um impacto significativo na saúde da população. “Quem mora no centro expandido geralmente está mais perto do trabalho, tem um sistema de transporte público melhor, calçada mais decente e ainda conta com a maior parte da estrutura cicloviária à sua disposição, então para essa população está havendo uma mudança. Já para o pobre, há um outro problema: mesmo que ele quisesse se deslocar ativamente, ele mora ‘na baixa da égua’”, diz Thiago. “Por isso é necessário romper com o muro da cidade e tirar o cinturão de pobreza o quanto antes.”
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É nesse sentido que Thiago Sá apresenta o conceito de “cidades compactas”, um modelo inclusivo capaz de favorecer os modos ativos de deslocamento e reverter a tendência alarmante. “Uma cidade compacta é aquela em que o sistema de transporte favorece a caminhada, a bicicleta e o transporte público, em que as pessoas não precisam se deslocar tanto para os seus destinos. Numa perspectiva mais filosófica, aspiracional, é uma cidade de encontros, que favorece a construção de um senso de comunidade, na qual eu te vejo e você se sente parte de um todo”, explica. Nesse protótipo de cidade, os serviços deixariam de se concentrar nas regiões centrais e estariam presentes em toda a parte. “É uma cidade com uso mais diverso do solo e mais adensada, como Barcelona e Paris, onde ricos e pobres, adultos e crianças vivem todos juntos.” Foi ao testar esse protótipo de cidade compacta no município de São Paulo que Thiago chegou aos dados que provam os benefícios do aumento do deslocamento ativo para a população.
“É necessário romper com o muro da cidade e tirar esse cinturão de pobreza o quanto antes”
Thiago Hérick de Sá
Para o pesquisador da Faculdade de Saúde Pública, um de nossos grandes empecilhos é a superação do “passivo histórico” brasileiro marcado pela urbanização precária, a desigualdade social e aquilo que considera um sistema político falido. “Ainda seguimos nessa disputa pequena com relação à infraestrutura cicloviária e redução de velocidade, tanto é que tivemos uma eleição baseada no aumento das marginais. Isso deveria ser ponto pacífico em comparação aos outros desafios mais urgentes [saúde e meio ambiente].” Questionado sobre a recente decisão do Governo Federal em postergar em sete anos a obrigatoriedade da implementação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana nos municípios brasileiros, Thiago reitera o seu posicionamento. “Sete anos é tempo demais. Se a gente tivesse duzentos anos pra mudar, era uma coisa, mas a gente tem uns trinta, no máximo.”
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