Todo mundo diz que adora a verdade. Mas ninguém vive sem uma boa dose de mentira
Todo mundo diz que adora a verdade. Mas ninguém vive sem uma boa dose de mentira. Isso é ruim?
Não mesmo... é fundamental, afirma o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca
O que aconteceria se nós tivéssemos acesso a tudo que se passa pela cabeça de nossos amigos, amores, parentes e colegas? “Seria o caos. Não sobraria pedra sobre pedra.” A afirmação é do economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, ph.D. pela Universidade de Cambridge e professor titular do Insper São Paulo (ex-Ibmec). Em uma edição que se arrisca no tema Segredos e Mentiras, nada mais seguro do que uma conversa com o professor Giannetti. O autor do bem-sucedido livro Autoengano (Companhia das Letras) sabe como poucos analisar a necessidade e a importância do ser humano de enganar os outros – e também a si mesmo.
Apesar de frequentemente apontada como um dos piores males da humanidade, a mentira em certa medida é necessária para o bom funcionamento da sociedade. Giannetti lembra que a dissimulação e a camuflagem estão presentes nos mais diferentes seres vivos. No caso do ser humano, a novidade, e o que aumenta exponencialmente a capacidade de mentir e iludir, é a linguagem: a mãe da política e das ficções. Um produto de uma consciência mais sofisticada que, para o bem e para o mal, também cria ilusões internas. Esse autoengano tem um lado positivo. “Muito do que o ser humano cria e conquista depende de uma boa parcela de autoengano. Para que os avanços aconteçam, existe um elemento de aposta, entrega e coragem que a lógica fria e o cálculo racional jamais permitiriam”, afirma o professor.
A seguir a entrevista que ele deu em sua casa. Nela, entre outras coisas, faz uma dura crítica ao politicamente correto e à auto (e enganosa) imagem do brasileiro.
A mentira é necessária? Imagine se pudéssemos ler tudo o que se passa na mente daqueles com quem interagimos. Teríamos que rever profundamente as bases dos nossos vínculos e as expectativas em relação aos outros. Seríamos obrigados a aceitar que toda convivência traz aspectos que não são agradáveis. Somos povoados por forças desconhecidas dentro de nós mesmos.
Enganar é vital para a sobrevivência das espécies? Evolutivamente a prática se revelou viável como estratégia de sobrevivência. No caso do ser humano, a grande novidade é a linguagem, que abre um universo de possibilidades de manipulação. O processo civilizatório nos força a criar uma imagem e a atender a expectativas que nos distanciam do que efetivamente somos. Nos tornamos cada vez mais atores que buscam manipular impressões alheias em benefício próprio. A onda do politicamente correto talvez seja o último capítulo dessa trajetória.
Como age o politicamente correto? O politicamente correto busca banir da experiência humana certas coisas que existem. Adoro ver como os sambistas no passado tinham a coragem de revelar sentimentos hoje varridos do espaço público. Tem um samba do Noel Rosa que diz: “Minha terra dá banana e aipim. O meu trabalho é encontrar quem descasque por mim”. Ninguém hoje tem coragem de dizer isso, embora muita gente pense assim. Dramaturgos como Nelson Rodrigues punham no palco as taras inconfessáveis dos primatas que habitam em nós. Ele dizia que aquilo tinha efeito purificador, pois as pessoas saíam aliviadas de uma peça em que viam representadas coisas que procuravam negar nelas mesmas.
E o autoengano, qual a função? Ninguém suporta uma visão muito nociva de si. Todos nós em alguma medida construímos fábulas que nos permitem conviver com nossas fraquezas, omissões e desejos. Temos uma consideração carinhosa por nós mesmos.
Que mentiras dizemos a nós mesmos? É comum fingir não ver o que está na sua frente. Acontece em casos de doença. Você apaga da consciência uma dor que sabe que pode ser grave, acha pretextos para não olhar pois poderá ter que enfrentar algo doloroso. Enquanto isso, os problemas se agravam. A sua vida pode ser uma mentira. Por exemplo: mantendo uma relação falsa com alguém por muito tempo, insistindo numa carreira que não é a sua ou mentindo o tempo todo para manter uma farsa.
Como evitar enganar-se demais sobre si mesmo? Um jeito é tentar se olhar de fora como os outros o veem. A psicanálise, a literatura e a introspecção ajudam. Outro ponto importante é ter amigos com quem você possa ter conversas francas, compartilhar pensamentos íntimos. E não é por meio de redes como o Facebook que você vai construir vínculos profundos. Não existem centenas de amigos, amigos são necessariamente poucos. A febre dessas tecnologias pode ser desespero, uma tentativa de escapar dessa condição de solidão e isolamento crescente.
Grandes mentirosos, políticos, por exemplo, chegam a acreditar na própria mentira? Alguém convencido de sua mentira mente de forma mais convincente. Políticos fazem promessas que se ouvissem de outros jamais acreditariam. Eles pensam: “Estou fazendo política num país em que todos agem assim. Sou apenas mais hábil”. Brasileiros têm olhos de lince para desvios de conduta ao redor, mas são cegos ao olhar para si. Todos se sentem superiores. Há a ideia de que brasileiro é o outro. Se fizer uma pesquisa, mais de 90% vão dizer que não têm preconceito racial. Se perguntar se há preconceito no país, mais de 90% dirão que sim. As duas coisas não podem ser verdade ao mesmo tempo.
Quais são as implicações do autoengano para a nossa vida? Num primeiro momento a gente tenderia a moralizar e dizer que são todas más. Mas eu tento mostrar que muito do que de melhor o ser humano cria e conquista depende de uma boa dose de autoengano.
Nós precisamos acreditar que podemos mais para conseguir avançar pelo menos um pouco. É isso? Sim. Não faríamos as apostas afetivas, criativas e desbravadoras se não tivéssemos o dom do autoengano. Quanta verdade suporta o espírito humano? O que aconteceria se nós nos déssemos conta da nossa insignificância? Do fato de que o Sol, o nosso astro rei, é uma estrela de quinta categoria entre 100 bilhões de estrelas da Via Láctea? De que o choque de um cometa errante com a Terra pode acabar com tudo o que mais valorizamos na humanidade? O autoengano é uma cegueira protetora contra uma verdade que pode se tornar paralisante.