Sobra dinheiro, falta tudo

por Milly Lacombe
Trip #223

Por que a maior e mais rica cidade do país não consegue resolver seus problemas básicos?

Por que a maior e mais rica cidade do país não consegue resolver seus problemas básicos? Por que tanta gente desiste de fazê-la melhorar?

Imaginemos um dia qualquer em nossas miseráveis vidas paulistanas. Acordamos cedo, tomamos café e saímos para ganhar o troco. Quem não foi abençoado com a definitiva sorte de morar perto do trabalho terá que tourear o trânsito da cidade. De carro, de ônibus, de metrô, de moto ou de bicicleta. E é aí que você começa a ser engolido. O corajoso ciclista será espremido entre carros apressados e, assustado, talvez pule para a calçada, onde perderá o status de oprimido e passará a ter o de opressor. O pedestre, essa espécie que está no último degrau da cadeia ecológica paulistana, tem que andar olhando para os lados para se certificar que pela calçada não vem uma bicicleta ou até uma moto. Enquanto isso, no asfalto a luta é medieval: motos ziguezagueiam para ganhar espaço e tempo, carros buzinam por qualquer coisa, ônibus aceleram sem se preocupar com quem está ao lado. A queima industrial de combustível faz com que a cidade registre 4 mil mortes por ano em decorrência da poluição. Sim, você leu certo: em uma pesquisa sobre o impacto da poluição na saúde pública da capital paulista, o médico Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP, concluiu que a maior causa de infartos está associada à poluição do ar e à permanência no trânsito.

Se você conseguiu chegar inteiro ao trabalho, a pressão seguinte é por metas: é preciso produzir, manter a margem de lucro. Com a economia rateando e os cortes de custos ganhando o contorno de uma grande onda no horizonte, o canibalismo corporativo só aumenta. Se, para bater a meta eu precisar passar a perna no colega ao lado, fazer o quê? Na hora do almoço, nem pensar em ir para casa, ou mudar de bairro; o trânsito continua medonho. O jeito é comer qualquer merda por ali. Na volta para casa, é preciso estar atento aos assaltos – já que a violência de fato aumentou: o primeiro trimestre deste ano registrou aumento de 18% no número de homicídios dolosos em relação ao mesmo período de 2012, e depois de 11 anos seguidos de queda a partir do ano 2000.

O que justifica o cotidiano caótico da cidade mais rica do Brasil? É certo que os problemas das metrópoles são muito parecidos, mas será que São Paulo, símbolo de pujança econômica, a cidade “que não pode parar”, não deveria estar alguns passos à frente na resolução de problemas básicos? Para começar a entender, é preciso tocar em dois dos pilares que sustentam o problema: falta de planejamento e desigualdade. “São Paulo sempre contou com pouco planejamento”, diz Paula Miraglia, doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo e diretora executiva do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente). “Isso foi determinante para moldá-la como cidade desigual que, a despeito do crescimento e do desenvolvimento recentes, não conseguiu reverter padrões de desigualdade.” Para o psicanalista e professor de filosofia Tales Ab’Saber, a cidade não é capaz de se resolver porque, embora o dinheiro sobre, muita coisa está em falta. “A diferença está na elite que adora andar na rua e de metrô e falar da qualidade do espaço público, mas só quando está em Paris, Barcelona ou Nova York, por exemplo”, diz ele, que cita o Minhocão, nome popular do elevado Costa e Silva, um dos símbolos da São Paulo que deu errado. “Uma diferença estaria em demolir ou reinventar como parque suspenso o Minhocão, contribuição da ditadura que sacrificou a vida de três bairros excelentes aos carros.” Ab’Saber lembra que a Cidade do México, que tem 9 milhões de habitantes, começou o seu metrô ao mesmo tempo que São Paulo, onde moram 11 milhões de almas, e que a Cidade do México tem 210 quilômetros de linhas contra apenas 70 quilômetros que a capital paulista construiu no mesmo período. Para ele, esse tipo de absurdo explica o atual estado das coisas, especialmente se levarmos em conta que o PIB de São Paulo (cerca de R$ 450 bilhões) é o 360 maior do mundo, segundo análise da Fecomercio - SP – à frente de países como Portugal, por exemplo.

Abraçar as diferenças

Figuras públicas como Antanas Mockus e Enrique Penalosa, dois dos ex-prefeitos de Bogotá, que reverteram índices de criminalidade alarmantes, entre outros problemas tão espinhosos quanto os nossos, são unânimes em dizer que a chave do problema está na própria cidade. “Uma cidade só se faz com gente na rua. Mas as pessoas precisam se sentir seguras nas ruas, e o papel do Estado é estar presente em todos os cantos da cidade. Que não haja rincões à margem”, declarou Penalosa em entrevista recente ao jornal O Estado de São Paulo. Só que, para escapar da sensação de insegurança das ruas, a classe média paulistana tomou o caminho contrário e se escondeu em condomínios. “Quando pessoas descrevem orgulhosas a vida num condomínio fechado (“eu nem preciso sair, posso fazer tudo aqui”) elas estão renunciando à cidade. Além de uma vida opaca frente a tudo que São Paulo pode oferecer, estão anunciando que não acreditam ou não estão dispostas a participar da transformação”, diz Paula Miraglia.

Nesse sentido, o projeto tombado do edifício Copan, de Oscar Niemeyer, seria a representação do que a cidade precisa para abraçar igualitariamente todos aqueles que nela vivem: trabalhadores, artistas, empresários, estudantes, profissionais autônomos. Como defende o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o Copan não interrompe a cidade como fazem as muralhas de concreto. Ao permitir que haja circulação entre seus pilares térreos, com lojas e cafés, o edifício se integra à cidade e convida à frequência. Dentro dele, quitinetes, apartamentos de tamanho médio e outros de 200 metros quadrados permitem a convivência de classes, mistura social imprescindível para que a cidade perca o status de caótica. “A sociedade brasileira sempre foi desigual e acabou instituindo o privilégio como regra”, diz Miraglia. “Em São Paulo, a disparidade entre o centro e suas periferias é enorme em termos de qualidade de vida. Ainda hoje as periferias são vitimizadas pela violência e é uma ilusão achar que sem tornar a cidade menos desigual seremos capazes de ter uma cidade segura.”

Em Bogotá, Penalosa entendeu a questão e construiu nas zonas mais marginais da cidade colégios, jardins, bibliotecas, programas de nutrição. “Queríamos mostrar respeito pela dignidade humana. Se o Estado não respeita a vida humana, por que os bandidos o fariam?” E, se a solução passa pela ocupação da cidade e pela mistura nas ruas, estamos andando em sentido contrário faz tempo. “Em certo momento dos anos 1990 os ricos paulistanos inventaram o carro blindado”, diz Ab’Saber. Hoje, blindam-se carros no Brasil inteiro, mas São Paulo ainda concentra 71% dessas blindagens, com uma média de 200 veículos por dia. 

Ele segue: “As pessoas estão sendo assassina­das nas ruas por um celular. Nada ocorreu à elite sobre como lidar com a expansão da cultura do consumo exibido que promove, e o fato de que a maioria dos salários dos pobres na cidade, quando eles têm salários, vai até R$ 700. Esse tipo de exploração violentíssima só poderia funcionar se houvesse compensações de espaço público universal: praças, parques, museus, centros culturais, atividades para o espírito e para o corpo, como ocorre em qualquer cidade boa do mundo”.

Mas o Brasil tem pouca tradição de uso dos espaços públicos. “O que temos visto recentemente é que, na medida em que o poder público disponibiliza bons espaços, eles são imediatamente ocupados”, diz Paula Miraglia. “A praça Roosevelt é exemplar. Sua ocupação depois da reforma foi objeto de disputa entre skatistas, moradores e outros usuários.” Ao contrário de achar ruim, a antropóloga acredita que o caminho é por aí: “Vejo o embate por aquele espaço como algo positivo. Significa que ele é desejado. O que precisamos é praticar mais esse tipo de disputa para poder fazê-la de forma produtiva”. Seu colega José Guilherme Magnani, do núcleo de antropologia da Universidade de São Paulo, enxerga um maior interesse da classe média pelo público: “Há engajamento, como na mobilização contra reformas que não respeitavam normas do tombamento do Parque da Água Branca, ou o movimento pelo Cine Belas Artes etc. E aí estão as recentes manifestações do Movimento Passe Livre”.

Alimentar a utopia

Fora o isolamento a que se entregou a classe dominante, ainda temos o “cada um por si”, esse estado de espírito coletivo que parece ser a ordem das grandes cidades – e São Paulo não foge à regra. “Ideias como ‘eu pago meus impostos, portanto já fiz a minha parte’, ou desabafos do tipo ‘São Paulo não dá mais’ são uma versão perigosa desse individualismo. É como se, ao se expressar dessa forma, você não tivesse responsabilidade pela realidade e, o pior, não enxergasse em si potencial para mudar o cenário”, diz Miraglia. Quando nem o carro blindado deu mais jeito, quem teve bolso se mandou para o céu. “É um escândalo que São Paulo tenha mais helicópteros voan­do do que Nova York”, diz Ab’Saber (a frota de helicópteros da cidade, estimada em 600 aero­naves, é a maior do mundo, à frente de Nova York e Tóquio). Miraglia concorda. “A cidade sempre será campo de disputas, o problema é que numa sociedade desigual como a nossa essa disputa já começa injustamente e as pessoas bem-sucedidas precisam entender que têm uma vantagem descomunal.”

Para resolver tanta coisa, seria necessário entender a violência para além da criminalidade e pensar nela, como pede a filósofa Marilena Chaui, como “qualquer violação física ou psíquica feita contra a natureza humana”. Nesse sentido, é vítima da violência da cidade tanto o empresário assaltado com uma arma na cabeça quanto a empregada doméstica que enfrenta, só de ida, 3 horas em transportes públicos de qualidade pornográfica para chegar ao trabalho. É entender que violência é também ir para a rua “contra a corrupção”, e falsificar a carteirinha de estudante. Mas há saída. Ab’Saber diz que existem hoje importantes projetos de urbanismo que pretendem revitalizar áreas da cidade – ele cita, por exemplo, o projeto de arquitetura que vai transformar o degradado Parque Dom Pedro numa espécie de Aterro do Flamengo. “Resolver esse pepino, em um ponto vital para a cidade, como esses arquitetos fizeram, seria uma injeção de esperança imensa sobre a vida na cidade.” (O projeto, criado pelo escritório Una, já foi aprovado, mas segue em tramitação na prefeitura). Para Paula Miraglia, a solução passa pela subversão completa da relação entre o centro e a periferia, ainda pautada pelo abismo entre esses mundos. “Isso significa fazer com que o que acontece em Cidade Tiradentes interesse ao morador de Higienópolis, e que um show no Ibirapuera seja frequentado pelo morador do Jardim Ângela; significa alimentar a utopia de que vivemos todos em uma mesma cidade.”

André Lira Rodrigues (Pinho), 17 anos Pinho tinha 8 anos quando foi convidado pelo pai, ao voltar das férias no interior, a retratar a cidade de São Paulo, para onde estava indo. Portador de síndrome de Down e com a fala comprometida, ele explicou, com o desenho, por que não gostaria de voltar à cidade. Hoje, adolescente, Pinho balança a cabeça positivamente quando perguntado se é feliz em São Paulo.

 
Pablo Saborido // câmera escura É fotógrafo argentino e assina o ensaio das imagens invertidas da cidade de São Paulo que ilustram esta matéria. Para chegar à inversão, o fotógrafo forra por completo com tecidos o espaço que deseja clicar e então abre um pequeno furo em uma parede do tecido. É nesse instante que a cidade invade a parede, só que de ponta-cabeça. "Câmera escura" convida à reflexão: se o que está fora está agora dentro, o que está dentro deve estar em algum lugar lá fora. Se ônibus passeiam pelas camas e as nuvens dançam com o chão de madeira, o que impede que a cama vá para o lugar dos ônibus e que fotógrafos dancem nas nuvens antes de o quarto ficar novamente escuro?
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