por Redação
Trip #166

Quero ajudar pessoas a escrever suas vidas como autores delas, com a leveza de quem canta no chuveiro. Este é o meu trabalho: encher de sentidos o sonho de ser feliz

POR LUIZ ALBERTO MENDES*

Fez quatro anos, dia 5 de abril, que saí da prisão. Tenho negociado com o tempo em busca de espaços. Aprendi paciência ativa. Ferramenta de atuação na lida com o tempo. Aquela que espera em ação permanente. É assim que tenho garantido os que dependem de mim. Às vezes o horizonte se encolhe e o amanhã parece que colapsa. Quando tudo é assim absurdamente sério, brinco de malabares. Jogo ao acaso da gravidade. Emoções, circunstâncias, tabletes de conhecimentos, poesia, bossa nova e rock’ n ‘roll. Sempre alguém gosta e colho um novo sorriso. É como dança. Despojamento e entrega ao ritmo para fluir em comunhão.
E assim vivo a reconstruir o ideal que fermenta meus sonhos. Ontem desejei ser escritor. Isso não dá certo em nosso país. Se alguém se disser escritor, vou perguntar: “E vive de quê?”. Passei cinco anos escrevendo, revisando e reescrevendo um livro. Lançado pela Cia. das Letras, foi finalista do Prêmio Jabuti de 2006. Esse é o concurso literário mais conceituado do país. No entanto, no trimestre passado o livro me rendeu somente R$ 5,30.
É preciso trabalhar para sobreviver. Escrever não é considerado trabalho. Voltei às salas de aula que eu deixara no presídio. Quis levar a meus ex-companheiros de sofrimento o livro que me salvara. Descobri, no processo, que não foram os livros e sim as pessoas que os trouxeram que me salvaram. Até de mim mesmo. É fantástico saber que existem pessoas preocupadas em resgatar outras pessoas. Seus olhos são doces como girassóis. Não os invejo. Eu os amo e busco o que sempre quiseram de mim: que seguisse o exemplo.

ENSINANTE
Ano passado estive em três penitenciárias desenvolvendo oficinas de escrita e leitura. Tudo em nome do concurso de redação promovido pelo Instituto Ecofuturo. Concomitantemente, o Instituto investiu em mim. Participei de seminários e simpósios. Aprendi muito com as teorias, já colocando em prática nas salas de aula. Quando se aprende a ensinar, só então se aprende de fato. Paulo Freire nos chama de “ensinantes”; seres que aprendem ensinando. Foi tão bom que presos de uma das penitenciárias em que estive fizeram abaixo-assinado para que eu voltasse. E voltei; agora em nome de uma biblioteca que o Instituto Ecofuturo estava montando na Penitenciária II de Bauru.
Ler não era mais mera decifração de códigos e símbolos. Os companheiros precisavam ler o que é a prisão em que estão; o que é a condenação; no que consiste cumprir pena; qual o sentido das leis. Até para entender por que alguns que fizeram pior ainda estão soltos. Ler como lemos o olhar. Invasivos e penetrantes, buscando entender o interior. Aprendi a ler polícia obrigado a encarar essa leitura. Minha mãe havia morrido. Minha esposa estava só, morando em bairro perigoso, com um bebê de 10 meses. Estava preso e não podia cuidar deles. Também necessitei que fossem protegidos. Só então entendi a importância da polícia.
Desde o fim do ano passado estou atrás de projetos. Quero voltar a trabalhar com os companheiros presos. Acredito que tenho muito mais a trocar e aprender com eles. Levarei leitura para os sonhos, para a vida e para sempre. Quero ajudar pessoas a escrever suas vidas como autores delas, para que leiam causas e conseqüências. Quero demonstrar a leveza de escrever para que escrevam como cantam no chuveiro, distraidamente. Assim, do mesmo jeito que bate o coração. A era do conhecimento consumado acabou. Agora tudo é transitório e relativo. Tudo está, não estando, e nos convoca a buscar dentro e fora de nós. Parece que passei esses quatro anos lutando para ser levado a sério em meu trabalho. Há pessoas e institutos que confiam em mim e que estarão comigo todo este ano. Este é meu valor: a confiança e o respeito que conquistei. E agora, depois do ensaio e dos primeiros passos do ano passado, enfim vou constituir e conquistar novos espaços. Este é o meu trabalho: encher de significados meu sonho de ser feliz.

*Luiz Alberto Mendes, 55, autor do livro Memórias de um sobrevivente, não vive de escrever, mas também não vive sem escrever. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br

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