por Marcos Candido
Trip #267

Enraizados na cultura brasileira, a espiritualidade e o sincretismo religioso ganham destaque nas letras do rap nacional, em busca de autoconhecimento na missão de transformar o mundo

"Tudo nesse mundo é emprestado, não faz sentido algum então ficar apegado, agregado ao que não te leva mais além, não te deixa sossegado." "O que for daquela forma, retorna com a mesma intensidade, de modo perfeito." Os trechos acima não saíram de nenhum livro sobre o desapego e o carma. São letras de rap. BNegão, 43, que alcançou a fama nos tempos de Planet Hemp, canta esses versos em "Prioridades" e "V.V.", de Enxugando gelo (2003), seu disco de estreia com a banda Seletores de Frequência. Esse mesmo tom segue em Sintoniza lá (2012) e Transmutação (2015).

“Não bebo em show para não desperdiçar a experiência real do que está acontecendo. Diria que dá um arrepio pelo corpo”
Tássia Reis

No início, causava uma certa estranheza a ideia de rimar sobre questões sociais e políticas pregando a mudança do mundo a partir de uma mudança interior. Hoje, o próprio BNegão nota isso no trabalho de outros artistas do hip-hop nacional. "Vejo muito claro no Síntese, com letras muito profundas. O Criolo é um cara muito espiritualizado. O Rodrigo Brandão coloca bastante coisa espiritual nas letras. O Nissin Oriente... Cara, tem gente", explica o rapper, que se identifica como universalista, tal qual Professor Hermógenes, seu mestre espiritual desde a adolescência – e amigo do momento em que se conheceram, em 2008, até a morte do iogue carioca, em 2015. 

Entre os artistas da nova geração, Rincon Sapiência, 31, que acaba de lançar Galanga livre, é um que reflete esse crescimento. "Pra gente passar essa energia de maneira envolvente às pessoas, transbordando nossas mensagens, temos que estar com o espírito muito bem cuidado", explica. Se não for assim, ele pensa que um sentido maior se perde: "Se torna um vazio e não conseguimos colocar o sentimento na letra.
A um artista que propõe se abrir tanto, como nós, cuidar da parte espiritual é essencial".

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Rincon se diz influenciado pelo movimento Hare Krishna e, hoje, antes de cada show, busca entrar em um estado de "autobênção", no qual movimenta os braços, passa a mão sobre o rosto e mentaliza um estado de paz pessoal até a mente se tornar límpida. "Não posso cantar só por cantar. Subir ao palco significa também fluir. E fluir feito uma chuva", diz. Antes de gravar Coisas do meu imaginário (2016), o rapper Rael, 34, decidiu entrar em um jejum na busca por esse mesmo estado. "Fiquei sem tomar qualquer bebida alcoólica durante seis meses. Após esse período, senti minhas energias fluírem, purificadas", conta.

Pelo caminho das religiões de matriz africana, Tássia Reis, 27, sente uma conexão especial no palco. "Existe uma energia, uma troca real. Mas seria prepotência minha dizer que, no palco, estou completamente alinhada com meus orixás, pois estou em uma posição desproporcional. Recebo muito mais energia do que devolvo a um público por vezes de 2 mil, 5 mil pessoas", ela diz. "Não bebo em show para não desperdiçar a experiência real do que está acontecendo. Diria que dá um arrepio pelo corpo." Rodrigo Brandão, 44, experimenta sensações semelhantes.

Os braços do MC começam a formigar no camarim. Essa dormência se espalha pelo corpo quando o show começa e após duas ou três músicas ele diz alcançar um estado intenso de euforia. "Me sinto em festa", conta o rapper, que levou sua experiência com o candomblé para vários projetos – Mamelo Sound System, Zulumbi, Ekundayo e agora Brookzill. Foi há cerca de 15 anos, quando ouviu uma sequência de tambores em um show, que Brandão descobriu sua conexão com o mundo espiritual. "Comecei a falar palavras desconhecidas, não sabia de onde elas vinham. Fui profundamente tocado", relembra. 

A ligação com religiões de matriz africana, o candomblé e a umbanda, é mais clássica na música brasileira (já vem do samba e se manifesta no hip-hop), mas no rap atual elas dividem espaço com o cristianismo ou com vertentes do budismo e de outras filosofias orientais. Esse crescimento da espiritualidade extrapolou a percepção do público e chegou ao mundo acadêmico. A doutora em antropologia Regina Novaes, que há mais de 20 anos estuda o elo entre espírito e rap, observa que a primeira característica dessa ligação é o sincretismo. Regina explica que o compromisso por buscar uma transformação social se sobrepõe à necessidade de adesão a uma religião específica. "De certa forma, uma instituição limitaria o discurso", considera.

Essa é a percepção de Emicida, 31. "Já tinha sido apresentado ao budismo pela minha mãe, que passou a praticar quando eu ainda era criança. Também aprecio os orixás do candomblé, assim como as religiões de matriz africana que extinguiram a figura do diabo", conta Emicida. "Viajei para a França no ano passado e passei a observar os vitrais das igrejas católicas. Muitos dos santos estavam com uma cara de sofrimento. O único que estava com um sorriso no rosto era o demônio. Quer coisa pior para o ser humano que punir as coisas que o fazem feliz?"

Emicida acredita que a sabedoria do autoconhecimento serve para resolver "questões terrenas", em uma batalha permanente contra qualquer tipo de opressão praticada por aqui mesmo. "O rap tem o desejo de mudança, de criar discípulos que ajudem aqueles que estão mais atrás a também conseguirem conhecimento para puxar pela mão aqueles que ainda estão subindo de patamar", diz. A espiritualidade, ele defende, apresenta estados introspectivos capazes de aguçar a sensibilidade social. "Nossa única palavra é a voz. E nós queremos, acima de tudo, conquistar liberdade e espalhar conhecimento. O hip-hop é um conhecimento mais fluido sobre a vida."

Em suas pesquisas, Regina também observa que esse sincretismo – mais espiritual que religioso – existe desde o surgimento do hip-hop nacional, e, em um primeiro momento, está ligado com os credos em que os rappers foram criados e educados. Thaíde e DJ Hum abriram seu primeiro disco com a faixa "Corpo fechado", de 1989, na qual "anjos e demônios" dividem as bênçãos sobre a dupla com "Ogum, Iemanjá e outros santos do além". 

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 Em 1996, o Racionais MC’s lançou Sobrevivendo no inferno, um disco clássico que tem a capa ilustrada por uma cruz e versículos bíblicos – além de músicas com passagens cristãs mescladas a versos sobre violência policial, racismo e identidade de classe. "Todos estávamos em busca de respostas, cada qual com os ensinamentos de sua espiritualidade", relembra Edi Rock, 46, que divide os vocais do grupo com Mano Brown e Ice Blue. Na época, Edi flertava com o espiritismo e Brown trazia características herdadas da Igreja evangélica, enquanto Blue teve a infância vivida nos terreiros de candomblé. Em entrevista concedida ao Trip TV no ano passado, o DJ KL Jay falou sobre sua crença em chacras e nas energias do universo, similar à do budismo. "Queríamos ilustrar com signos de esperança aos nossos, à periferia. Nesse caso, o inferno do título é um sinônimo para Brasil", explica Edi.

Regina afirma que "o hip-hop, como manifestação cultural, reflete o momento no qual vivemos em relação à espiritualidade geral". BNegão concorda: "O momento do mundo pede isso. Hoje em dia, a galera está mais ligada em estar fora dos dogmas de um movimento, o que pode e o que não pode. Não tem mais essa. Os dogmas caíram, o mundo está aí em uma urgência.  A galera está com a cabeça mais livre. Você tem que fazer o que o seu espírito manda".

(Colaborou Douglas Vieira)

Créditos

Imagem principal: Luiz Maximiano

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