Perguntamos a sete personalidades muito diferentes sobre suas epifanias com a arte
Qual a função da arte? Expressar beleza, traduzir o espírito, provocar pensamentos e emoções... Nada disso parece explicar o poder do encontro entre uma obra de arte e uma pessoa que soube vê-la além da superfície. É sobre esse instante raro, transcendente e fundamental que perguntamos a sete personalidades muito diferentes.
ELKE MARAVILHA, atriz
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche dizia que nós temos a arte para nos salvar da nossa dura realidade. Pois A vitória alada de Samotrácia é o que me salva. A obra de arte da minha vida. É uma escultura que representa a deusa grega da vitória, Niké, uma mulher alada que, com o tempo, ficou sem cabeça. Mas o tempo é um grande escultor, ela ficou melhor desse jeito. É de um autor desconhecido e foi trazida da ilha de Samotrácia, no mar Egeu. Niké representa o ideal de um povo, não de uma única pessoa. A gente nem sabe quem a esculpiu! Na época em que foi criada, por volta de 190 a.C., era comum que as estátuas fossem feitas por várias pessoas diferentes. A primeira vez que eu a vi foi em 1965, no Museu do Louvre, em Paris. Eu tinha 20 anos. Durante 20 dias, bati ponto no local para observar aquela maravilha. É difícil traduzir em palavras a sensação que ela provocou. É algo que transcende, sabe? Se existisse uma só obra de arte no mundo, eu pediria a Deus que fosse ela. É um absurdo de maravilhosa!
CARLOS BURLE, surfista
Como não dizer que o que transformou minha vida foi a arte de deslizar sobre as ondas? Um momento marcante foi quando assisti pela primeira vez ao filme Free ride [de Bill Delaney, 1977]. Eu estava com Eraldo Gueiros, Helio Coutinho, Claudio Marroquim e mais alguns amigos na casa da prima do Eraldo. Fiquei impressionado com as ondas, as cores e aquele mundo tão vivo. Me emocionava a cada cena. Era uma coisa física. Dava pulos e gritava! Eu sabia que tinha que viver aquilo. O filme me deu a certeza de que um dia chegaria ao Havaí. No fim da minha primeira temporada lá, me senti tão bem e feliz que prometi que voltaria sempre. Não importava o que acontecesse, eu estaria lá. E foi isso o que aconteceu. Hoje já são 24 temporadas, construídas com amor e perseverança. Já fui ao Havaí machucado, sem dinheiro, sem patrocínio e muitas vezes vendi o que tinha para cumprir essa promessa. E o que seria de mim sem as ondas grandes? Devo meu sucesso na profissão a essa relação com as ilhas havaianas.
SÓCRATES, ex-jogador de futebol
O que me marcou na infância foi o fato de ter sido criado em uma biblioteca que meu pai construíra com muito esforço em nossa casa em Igarapé-Açu, no Pará. José de Alencar, Monteiro Lobato e, mais tarde, Machado de Assis e Gabriel García Márquez foram meus primeiros e mais importantes professores. Alencar e Machado, com obras como Iracema e Dom Casmurro, mexeram muito comigo por conta de suas origens e suas lutas contra a discriminação. Monteiro Lobato pelos sonhos e ensinamentos a que nos levava nas histórias do Sítio do picapau amarelo. García Márquez, por Cem anos de solidão. Encontrei na literatura uma relação íntima com a minha história, minhas origens, as lutas do meu pai, nordestino que não tinha o fundamental completo, mal tinha o que comer e vivia em casa sem água encanada. Além de terem formatado minha alma, esses livros levaram-me a mundos que jamais imaginei viver e acabei por ter o privilégio de conhecê-los e com eles aprender muito do que sou.
TERESA CRISTINA, sambista
O culpado do meu envolvimento com o samba foi Antônio Candeia Filho. Ao reencontrar o álbum Samba de roda, que meu pai ouvia na minha infância na Vila da Penha (zona norte do Rio), me senti na obrigação de correr atrás da história daquela voz tão marcante. E, ao percorrer a história de Candeia, me reencontrei com o passado. A forte ligação com o Recôncavo Baiano (berço de meu pai), as atitudes racistas estúpidas de meninos do ginasial, a relevância da cor da minha pele, o orgulho e a alegria de me descobrir negra... estava tudo ali... naquela voz rouca do Candeia. Foi ouvindo ele que tive vontade pela primeira vez de subir ao palco e cantar. A sede de saber sobre meu ídolo me levou até seu biógrafo, que me apresentou ao Wilson Moreira e este me levou à Velha Guarda da Portela. Quando dei por mim já estava em Madureira, ouvindo os ensaios da Velha Guarda e mostrando meus sambas para a verdadeira aristocracia da música brasileira.
KARINA BUHR, cantora
Em 1998 fui ao Teatro Oficina assistir à peça Cacilda. A minha falta de conhecimento da história de Cacilda Becker e dos personagens que faziam parte dela me deu o privilégio de, em cada uma das cinco vezes que assisti, descobrir uma peça diferente dentro da mesma. Me impressionou a direção em cada detalhe, as atuações, tudo misturado com música e imagens estonteantes. Ali senti o valor imenso do convite que Zé Celso me fez pra atuar em Bacantes após um show meu com a Comadre Fulozinha em Recife. Completou o meu ciclo de sustos magníficos com o Teatro Oficina a turnê que fizemos de Os sertões, que começou em Berlim em 2005 e terminou em Canudos em 2007. Fazer Os sertões em Canudos foi como ter vivido e morrido e ter valido a pena. Contracenar com aquele lugar e as pessoas de lá, após imersão profunda no livro de Euclides da Cunha, na direção de Zé Celso e integrando um coro de atores, músicos, técnicos e apaixonados por essa história, é algo que não cabe em palavras.
ZÉ CELSO, diretor de teatro
Veio em ondas: vindas de músicas que saíam de uma jukebox de um bar de putas na esquina da rua onde eu morava em Araraquara; jorrando no céu estrelado do natal junino; em sopros de Pixinguinhas duetando com a voz de Isaurinha Garcia cantando “Último desejo”, de Noel Rosa. Veio em imagens: de cinema, com Antonin Artaud respirando, arfando diante da intensidade monstruosamente contida de Renée Falconetti no papel de Joana D’Arc, no filme mudo de Carl Theodor Dryer; de jornal, na Noite ilustrada do Rio, numa foto de Maria Della Costa, descalça, de meias de nylon, dormindo no teatro Phoenix, que queriam destruir (Getúlio Vargas imediatamente se tocou e decretou que onde quer que se destruísse um teatro se construísse outro). Veio pelo sopro de Olorum, na primeira música que compus ao violão, após ter perdido uma pipa num vento forte. A música inspirou a minha primeira peça, que saiu em 40 min. Foi o meu segundo nascimento, dessa vez para o Teatro. Descobri aí o meu Outro.
LAERTE, cartunista
Até uns 14 anos, fui um adolescente superconservador em meu modo de ver e pensar o mundo – era um jovem católico, parnasiano e erudito, com vontade imensa de construir coisas. Minha ansiedade era igual ao medo que sentia diante da enorme liberdade com que os anos 60 pipocavam no mundo – aqui, o tropicalismo florescia em cores e estéticas heterodoxas. De 1966 a 1968, fiz um curso na Faap, em São Paulo. Tínhamos aulas de desenho, pintura, gravura e teatro – com Naum Alves de Souza. O curso foi um processo de mudança – minha visão das artes plásticas se abriu. Mas o que mudou minha vida mesmo foi a montagem de Fausto que nosso grupo fez em 1967. Era uma adaptação muito livre da história de Goethe, com um tratamento inspirado no teatro musical burlesco, no circo, na linguagem pop da televisão. Dali pra frente me senti outra pessoa, dona de uma maneira própria de ver o mundo, com uma síntese de humor e imaginação desenfreada.