O sono é um privilégio

por Marcos Candido
Trip #265

Num passado nem tão remoto, privação de sono era sinônimo de tortura. Hoje, 53% dos adultos brasileiros dormem menos horas do que necessitam e, quando o fazem, têm pesadelos, insônia ou apneia

De uma pequena casa em Itapira, a 170 quilômetros da capital paulista, a enfermeira Mariane Carolina Rossi, 23, ajuda mais de 200 mil pessoas a pegar no sono. A demanda de insones é grande, mas os vídeos semanais publicados no YouTube dão conta do recado. O canal Sweet Carol não indica ansiolíticos ou dá conselhos de quem venceu a insônia. Na realidade, Mariane nunca teve problemas para dormir. Entrou no nicho meio ao acaso, enquanto filmava sua vida e dividia dicas de maquiagem. Bastou incluir a frase "Vídeo para dar soninho" em alguns envios que, em 2013, o público respondeu massivamente.

Para embalar o sono de quem assiste, Mariane usa técnicas que fazem sucesso na internet e produzem um efeito chamado ASMR (sigla para "autonomous sensory meridian response", em inglês, que pode ser traduzido por "resposta sensorial autônoma de clímax"). Em outras palavras, é um formigamento ou arrepio que quase sempre desce da cabeça pelo pescoço e pode ser provocado por cafunés, vozes em volume baixo ou o som de dedos roçando um papel. Quando prazerosa, um de seus principais efeitos é o relaxamento.

Na prática, os vídeos têm um quê de sensual e podem ser até desconfortáveis para alguns. Falando aos sussurros, Mariane mantém os olhos escuros fixos na câmera (para uma experiência mais imersiva, ela recomenda o uso de fones de ouvido). A partir daí, manuseia objetos de forma delicada. Pode ser o som do abrir e fechar de um zíper, bem lentamente, ou o bater das unhas contra a capa de um livro, de leve. A youtuber usa um microfone estéreo para oferecer uma experiência sonora idem. Assim, transporta o espectador a sinfonias quase imperceptíveis no cotidiano. Ela se diz contente em ajudar – e em ver os cliques de seu site aumentarem. "", analisa.

PESQUE E PAGUE

“O mundo cobra cada vez mais responsabilidade. Ou você roda junto, ou você fica tonto”
Sweet Carol

No centro de São Paulo, a empresa Cochilo monetiza o mesmo tipo de ajuda. Por R$ 12, o cliente pode tirar um cochilo de 15 minutos em uma das cabines com isolamento acústico das duas sedes, na praça Antônio Prado, bem no centro da cidade, e na rua Joaquim Floriano, uma movimentada via do bairro comercial Itaim. Ali, o sono também é vendido por hora: R$ 25 cada. Ao fim de cada ciclo, a cama vibra suavemente para acordar o hóspede.

As duas unidades contrataram senhoras simpáticas para recepcionar os clientes e cuidar do ambiente. "São as cochileiras, que ajudam a criar aquele clima calmo de casa da avó", diz a designer, uma das sócias. Filha de um dos proprietários, virou expert no assunto ao entrar no negócio. Hoje, comanda a expansão da marca. "Assim como o Starbucks não vende só café, nós não vendemos só o cochilo. Criamos uma experiência de sono", argumenta.

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Especializada em design de interiores pela Universidade de Artes de Londres, Camila ajudou a montar o ambiente dos boxes, equipados com luzes baixas e uma cama ondulada. Se preferir, o cliente pode ouvir sons da natureza, música clássica ou calmas melodias de meditação em fones de ouvido. Aberta em 2012, a empresa arquiteta inaugurar filiais em outras cidades do país ainda este ano.

Não é difícil deduzir o que os novos seguidores de Mariane e as próximas lojas da Cochilo querem dizer: tem gente precisando de ajuda para dormir. Um levantamento de 2016 encabeçado pela doutora em psicobiologia Camila Hirotsu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), feito em parceria com o Datafolha, mostrou que 53% da população brasileira sofre com algum problema durante o sono – insônia (24%), pesadelos (11%), ronco (22%), apneia (3%) e/ou pernas chutando (5%). No total, a estimativa é de que 80 milhões de pessoas não durmam como deveriam.

Nos Estados Unidos, em um esforço para calcular o tempo de descanso, pesquisadores concluíram que, nos últimos 50 anos, reduzimos nosso sono diário em quase uma hora e meia. Parece pouco, mas o consenso médico confirmado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de que a falta de descanso eleva índices internacionais de dificuldade no aprendizado, obesidade, doenças cardíacas e envelhecimento precoce. Tanto é que a entidade escolheu um dia, 17 de março, para alertar governos sobre os efeitos do cansaço.

SONOREXIA

Contribui para o distúrbio mundial o fato de que, desvalorizado, o descanso perdeu espaço para outro valor: a produtividade. Num nível pessoal, a otimização corporativa se traduz em multitasking também no lazer e no tempo livre. Um exemplo bobo? Fazer duas coisas ao mesmo tempo, como ir à academia enquanto ouve um livro sonoro. Outro, nem tão bobo? Lotar a agenda das crianças com atividades "úteis". "Dormir o sono dos justos", como dizia o ditado popular, era um privilégio de quem fazia escolhas acertadas e cumpria com suas obrigações. Tão natural no passado, a ideia de que o sono é a recompensa pelo trabalho soa hoje radical. O resultado é que passamos o dia tentando fazer mais e, à noite, falhamos em fazer nada.

No livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono, o historiador Jonathan Crary, professor da Universidade de Columbia, defende que o sono é dos poucos momentos em que ainda podemos ser improdutivos. Ainda. Seja no trabalho ou nas redes sociais, nossa vida hiperconectada tende a nos colocar em posição de produção e consumo durante a maior parte do dia e da noite, defende.

Entre os inventos para manter a ordem alerta das coisas, Crary narra um projeto de alta tecnologia russo dos anos 90: a criação de uma lua artificial feita de espelhos que refletiria os raios solares em regiões escuras da Sibéria. A intenção era iluminar porções de terra que, justamente pela falta de sol, produziam menos do que o esperado. Desencorajado por órgãos ambientalistas à época, que alertaram para a desregulação biológica de centenas de espécies – a humana incluída –, o plano não foi concretizado, apesar de ter reunido esforços de cientistas e cosmonautas de ponta.

A neurobióloga Lia Bittencourt, docente da Unifesp e coordenadora do Instituto do Sono, em São Paulo, acredita que o discurso da eficácia dificulta, mesmo, o sono de muita gente. Ela chama o problema de "sonorexia", em referência à anorexia, doença de pessoas que, na maioria das vezes, se privam de comer em busca de um ideal de magreza. Alguns dos tipos que se gabam de dormir pouco são, com maior frequência, executivos de alto escalão e empresários, como o atual prefeito de São Paulo, João Doria Jr. Na sua lógica administrativa, enviar mensagens de madrugada aos subordinados é normal. Começar o expediente às 6 horas da manhã sem hora para acabar, também – o resto é preguiça, no marketing da eficiência.

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Mas os números contradizem essa lógica. No mais recente estudo que relaciona o quanto a cultura antissono impacta a economia, em 2016, ingleses da Universidade de Cambridge, em parceria com o instituto de pesquisa Rand Europe, demonstraram que os Estados Unidos perderam mais de US$ 411 bilhões devido à baixa produtividade de funcionários sonolentos. No Japão, foram mais US$ 138 bilhões. Outros US$ 60 bilhões foram gastos na Alemanha e US$ 50 bilhões, no Reino Unido.

CÉU DE TIMELINE

Os médicos do sono recomendam não levar para cama tablets e smartphones, isso você já sabe. O porquê da dica reside na luz que eles emitem, geralmente composta de um mix de azul e branco. Ela eleva o nível de cortisol, hormônio que nos mantêm alertas e mais propensos a desenvolver picos de estresse e ansiedade. Assim como televisões e lâmpadas brancas, esses aparelhos enviam um sinal à glândula pineal, responsável por regular o ciclo biológico do corpo ao longo do dia, induzindo-a
a manter o corpo funcionando, como se o sol ainda estivesse alto lá fora.

“Humanos não são máquinas da revolução digital”
Camila Jankavski, sócia da empresa Cochilo

Caso você não tenha notado, azul e branco formam a paleta de cores das redes sociais Facebook, LinkedIn e Twitter. Quem sai perdendo é a melatonina, o hormônio do sono, que tem dificuldades em ser preponderante no cérebro em meio a tantos alertas disparados. Por isso é fácil passar meia hora rolando a timeline, mesmo exausto após um longo dia de trabalho.

A insônia, analisam os estudiosos, é como uma febre: deve ser entendida como sintoma, e não como doença em si. Rolar de um lado para o outro serve como alerta de que algo além da cama é que perturba o sono, analisa Bittencourt. "No passado, em quase todos os casos de insônia, receitava-se remédio. Hoje, isso começa a ser visto como tapar o sol com a peneira. É preciso repensar a qualidade do sono a partir de novos métodos de relaxamento, uma vez que vencer todas as ansiedades e interferências sobre o sono é complicado", afirma. "Dormir bem, em 2017, é um privilégio."

Pensando nisso, nos próximos meses, a empresária Camila pretende formalizar um programa de levantamento de dados de usuários que, posteriormente, serão enviados ao setor de recursos humanos das empresas em que os clientes trabalham. "Mesmo as companhias que estimulam exercícios físicos e hábitos saudáveis de seus funcionários ainda estão começando a entender a importância do sono para melhorar a produtividade dos negócios", argumenta. "Humanos não são máquinas da revolução digital."

Créditos

Imagem principal: Luara Calvi Anic

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