por Redação

No país dos gênios criativos e do abismo social, perguntamos a estes brasileiros (e a um refugiado sírio) como enxergam os próprios privilégios

Saeed Mourad, 74, médico
Refugiado sírio, dono do restaurante Damas, na mesma rua da Trip Editora, em São Paulo.

Trip. Se sente privilegiado? Talvez… sim.

Qual a maior expressão disso? Ter construído uma grande carreira. Sou médico. Morei na Inglaterra e na Áustria exercendo minha profissão. Na Síria, tinha um consultório particular em um prédio de seis andares. Tinha cinco casas, uma grande casa no campo e vários carros. Então, quando tive de sair do país e mudar minha família para um lugar mais seguro, eu tinha condições para fazê-lo.

E a maior dificuldade? Deixar tudo para trás. Em 2011, quando o conflito começou, situações bem ruins ocorreram comigo em Damasco. Em uma delas, houve uma explosão em frente à minha clínica e eu me machuquei bastante. Foi aí que eu achei melhor deixar a Síria.

Os fatos o modificaram? Não, não influenciaram quem sou. Eu comecei do zero. Meu pai morreu quando eu tinha 10 anos. Tive de trabalhar desde cedo, inclusive para pagar meus estudos em medicina. Então, acredito que o homem pode fazer dinheiro, mas o dinheiro não faz o homem. Dinheiro vem e vai. Você pode ser rico ou pobre, não importa. Se for um bom homem, vai construir uma boa vida.

E hoje? Tenho 74 anos, mas sinto como se tivesse 30. Meu privilégio é ter energia para trabalhar 12 horas por dia, das 8 da manhã às 8 da noite, e assim manter uma vida boa para minha família.  

Kenia Maria, 41, atriz
A empresária, roteirista e atriz criou, em 2013, o canal de YouTube Tá Bom pra Você?, que debate questões raciais com humor inteligente. Em março deste ano, foi nomeada defensora dos Direitos das Mulheres Negras pela ONU.

Trip. Se considera uma pessoa privilegiada? Não. Nasci num país que ocupa o quinto lugar no ranking de violência contra a mulher. Nosso país é extremamente racista, machista e patriarcal.

Qual foi o maior privilégio que você teve na vida? Como mulher, negra e brasileira, eu tive mais de um. Conviver com meus avós, saber a história deles, ter um álbum de família, ter pais e tios presentes durante todo o meu crescimento e, o principal, ter acesso a uma boa educação.

Como tudo isso marcou você? Até hoje eu sou amparada por muitas mulheres que têm o mesmo fenótipo que eu. Convivo com meus espelhos de vida: a minha mãe, a pedagoga Heloísa Dias, a mestra em filosofia Djamila Ribeiro e a socióloga e defensora pública Vilma Reis. Essas mulheres me deram coragem para enfrentar a dificuldade que é ser uma mulher negra no meu país e ajudaram que eu me tornasse eu mesma.

Qual sua definição de privilégio, hoje? Levando em conta que o vestibular é um processo de avaliação classista, fazer uma faculdade pública no Brasil é um privilégio. Por isso as cotas nas universidades são, atualmente, a única saída para quebrar o sistema de exclusão.

Fred Pompermayer, 41, fotógrafo
Especializado em imagens de esportes radicais e aventura, é o fotógrafo brasileiro mais premiado do surf, figurando com frequência no XXL Big Wave Awards, o “Oscar” das capturas de ondas grandes. Vive na Califórnia.

Trip. Se considera privilegiado? Posso dizer que sim, pelo fato de trabalhar com o que eu amo: viagem, aventura, cultura e esportes outdoor. Me sinto superprivilegiado por isso.

Qual o maior privilégio que teve na vida? Ter tido uma mãe incrível, que se dedicou 100% aos filhos. Mesmo com todos os perrengues que passamos, ela sempre apoiou minhas decisões, nunca quis influenciar minhas escolhas e tentou me guiar para um caminho que me desse estabilidade, dinheiro etc.

E o contrário? Foi perder meu pai muito cedo, com 1 ano e meio de idade. Tudo mudou depois que ele morreu. Minha mãe ficou sozinha com três filhos, e minha infância e adolescência foram superdifíceis por conta disso.

Como as duas coisas o marcaram? Elas me fizeram crescer, descobrir quem eu sou de verdade e o que eu amo fazer.

E agora? Privilégio para mim hoje é poder viver o presente. O amanhã não existe, eu vivo agora, conquistei isso. Vivo com minha família e participo ativamente do crescimento da minha filha, com quem tenho uma conexão muito especial.

Gabriela Duarte, 41, pilota
A carioca é comandante na companhia aérea Gol, onde trabalha desde 2004.

Trip. Você se considera uma pessoa privilegiada? Sim. Pela minha família e por ter realizado meu sonho de criança: pilotar avião. Também por ter vivido um grande amor, por ter subido o monte Roraima, ter vencido meus medos e ser paraquedista.

Qual foi o maior privilégio que você teve na vida? Nascer na minha família! Meus pais me ensinaram com exemplo e foram meus maiores incentivadores.

O que é privilégio para você hoje? Ter saúde, buscar ser feliz nas coisas simples da vida, ter amigos de verdade e cultivar meus sonhos e a esperança.

João Carlos Martins, 76, maestro e pianista
Reconhecido pelas interpretações das obras de Johann Sebastian Bach, o brasileiro já conduziu a English Chamber Orchestra, uma das maiores orquestras de câmara do mundo. Em 2012, passou por uma cirurgia para implantar eletrodos e recuperar os movimentos da mão esquerda.

Trip. O senhor se considera uma pessoa privilegiada? Acredito que quem tem a disciplina de um atleta e a alma de um poeta, em algum momento, lá no seu nascimento, recebeu um dom de Deus. E eu o recebi, então, sim!

Em algum momento se sentiu desfavorecido? A pior coisa que aconteceu comigo foi perder as mãos para o piano, mas a melhor coisa que aconteceu comigo também foi perder as mãos para o piano, pois foi através da música que eu consegui manter a trajetória da esperança. Quando subo no palco para um concerto, não peço a Deus ou algo superior que me ajude, porque Deus tem coisas maiores com que se preocupar, como as guerras. O que eu mais faço, todos os dias, é agradecer pela determinação que tive para superar as adversidades que tive na vida. E esse é meu maior privilégio.

E hoje? Hoje, privilégio para mim é viver!

Ferréz, 42, rapper e escritor
Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, é poeta do Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo, onde atua com ações sociais ligadas ao movimento hip-hop. É autor dos livros Capão pecado e, o mais recente, Os ricos também morrem, de 2015.

Trip. Se considera uma pessoa privilegiada? Sim.

Qual o maior privilégio da sua vida? Sobreviver morando num lugar que não foi feito para isso. 

E o contrário? Ver meu melhor amigo na mesa de necrotério.

Como os dois fatos moldaram você? São dois extremos que me influenciam até hoje. Nos momentos em que todos estão tranquilos, me sinto errado. Quando algo me deixa feliz, automaticamente penso: como posso estar feliz? Se não está bom para todos, por que pra mim estaria?

E hoje, o que é privilégio para você? Expor minhas ideias nos lugares. Não sei se estão ouvindo, mas poder falar é um grande privilégio.

Alok Petrillo, 25, DJ
O goiano é um dos principais DJs do país e ficou em 25º lugar no último ranking mundial da revista DJ Mag. Seus pais participaram da criação do festival Universo Paralello.

Trip. Qual foi o maior privilégio que você teve? Minha família me deu liberdade na minha caminhada. Também me fizeram perceber que não precisava de muito dinheiro e que poderia conquistar as coisas que me proporcionariam uma vida legal através da criatividade.

Como tudo isso marcou você? Ser livre para usar essa criatividade como bem entendesse, sem cobranças, me motivou a estar onde estou.

O que é privilégio para você hoje? Uma vantagem sobre a situação de outras pessoas. Mas acredito que privilégios venham com a maneira com que você emite as coisas para o universo. Quem planta colhe.

Stephanie Ribeiro, 23, arquiteta
É ativista feminista da causa negra, integrou o coletivo Blogueiras Negras e hoje escreve para o site 
Huffington Post Brasil.

Trip. Qual foi o maior privilégio que você teve na vida? Crescer numa cidade com água tratada, boas escolas públicas e baixa criminalidade (Araraquara tem IDH de 0,815), ter avós com casa própria que apoiaram minha mãe após ela ser abandonada pelo meu pai, não ter que trabalhar na adolescência e poder focar em livros, desenhos educativos, filmes e aulas extracurriculares foi sem dúvida uma série de privilégios que me fez alcançar o que entendo como o meu maior privilégio: ter um diploma de arquitetura e urbanismo na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Não posso imaginar como minha vida seria se eu não tivesse acesso ao Prouni [programa do governo de bolsas para universidades privadas].

E a maior dificuldade? Sou uma mulher negra impactada pelo racismo e pelo machismo, sofro constantes violências pelas quais outras pessoas não passam. Na escola, sempre fui a “pretinha”, a “macaca”, a “cabelo de Bombril”. Não tem dia em que a sociedade não me lembre de que tenho que me esforçar quatro vezes mais para ser vista e respeitada.

Como isso influencia você? Eu me cobro demais e me sinto incapaz em vários momentos da vida. Além disso, me cobro falar sobre racismo, mesmo quando não quero. É um peso que todo negro com consciência carrega. Ao mesmo tempo, não me encontro na mesma situação que a maioria negra, pobre e com os piores salários nem com os privilégios da classe média branca. Me vejo como no meio do caminho.

Maurizélia de Brito Silva, 51, bióloga
É chefe da unidade de conservação ecológica do Atol das Rocas, no mar brasileiro, a oeste do arquipélago de Fernando de Noronha. Lá, enfrentou barcos pesqueiros ilegais, falta de mantimentos e as pressões do isolamento geográfico.

Trip. Você se considera uma pessoa privilegiada? Sim, bastante. Ainda que, às vezes, me sinta humilhada. Tenho uma carreira profissional pela qual sou apaixonada, minha família que me apoia e entende a minha forma de vida e convivo com amigos verdadeiros. Quando estou em casa, quatro gatos miam para mim: Frida, Gato Atol, Narizinho e Flor. Eles me mostram que preciso suportar e superar as dores e angústias porque eles precisam de mim. E eu deles.

Qual é o maior privilégio da sua vida? Continuar trabalhando na mesma Unidade de Conservação [a Reserva Biológica do Atol das Rocas/ICMBio/MMA] desde o início de suas atividades, em 1991. E, apesar do tempo, respeitar e amar tudo do mesmo jeito, cada pedaço do atol. Há pouco mais de 26 anos tento me manter focada no que é melhor para nós dois, o atol e eu. Às vezes isso não é possível, mas na maioria das vezes tem dado certo. Isso requer honestidade, lealdade, disciplina, superação, respeito, compromisso e muito amor, com uma renovação diária.

Niède Guidon, 84, arqueóloga
É o nome e o esforço por trás do parque Serra da Capivara, no Piauí, onde ficam as pinturas rupestres que ela e sua equipe descobriram na década de 1970 e que reescrevem a história da humanidade nas Américas.

Trip. Qual foi o maior privilégio que você teve na vida? Sem dúvida foi ter podido viver e trabalhar naquilo de que gostava. Nasci numa família de classe média numa época em que a escola pública era de excelente qualidade. Fui privilegiada por ter tido convicções firmes, me sentido livre e profundamente democrata, e por ter passado minha vida gozando de boa saúde.

E a maior dificuldade? Ver que o mundo está muito diferente e pior do que o conheci. Nasci na ditadura de Getúlio Vargas, fui obrigada a ir embora na época dos militares e, agora, vejo como interesses pessoais destroem meu país mais uma vez.

Como as duas coisas influenciaram quem você é? Me sinto cansada de lutar com “moinhos de vento”, mas não lamento o que fiz. Teria gostado, porém, de ver definitivamente reconhecido o valor extraordinário que tem o Parque Nacional Serra da Capivara e a sua região desenvolvida.

O que é privilégio para você hoje? Ainda ter amigos que me apoiam e compartilham comigo decisões, momentos, ideias – ou seja, a vida.

Wellington Nogueira, 56, palhaço
É fundador da ONG Doutores da Alegria, que leva palhaços profissionais a alas infantis de hospitais de São Paulo, Recife e Rio de Janeiro. A entidade fez mais de 1 milhão de atendimentos em 25 anos de atuação focada em transformar o ambiente de tratamento para crianças, pais e cuidadores.

Trip. Qual foi o maior privilégio que teve na vida? Poder testemunhar, 29 anos atrás, o impacto gerado dentro de um hospital por um palhaço incrível, Michael Christensen [inventor, em Nova York, do programa que inspirou a criação da ONG de Nogueira]. Não fazia ideia de que aquela transformação era possível. Nem que a arte tinha esse alcance, essa complexidade e essa simplicidade. 
Foi um divisor de águas.

O que é privilégio para você hoje? Servir. E correr o risco de fazer bons estragos que apontem saídas ou alternativas. E que isso acabe em boas mudanças.

Caito Maia, 48, empresário
Ex-roqueiro, o paulistano é fundador da Chilli Beans, rede de lojas de óculos que tem mais de 700 franquias no país. Desde o ano passado, a marca é case de estudo na Harvard Business School.

Trip. Você se considera uma pessoa privilegiada?

Eu tenho uma vida maravilhosa, faço o que eu gosto, amo o que eu faço. Então, sim, me considero.

Qual a maior expressão disso? 
O maior privilégio até hoje foi poder ajudar as pessoas que trabalham comigo em termos financeiros, de prosperidade 
e de fomento.

E a maior dificuldade?

Está relacionada ao governo brasileiro que, infelizmente, é uma mão contra o crescimento.

Jonas Letieri, 32, atleta
O designer virou esportista profissional depois de um acidente em que perdeu os dois antebraços, em 2011. Destaque no stand-up paddle, está se preparando para a prova mais extra de esportes de remo: os 715 quilômetros do Yukon River Quest.

Trip. Você se sente privilegiado? Sim, tenho uma vida incrível e, mesmo tendo enfrentado situações muito difíceis, tenho todos os motivos do mundo para sorrir.

Qual foi o maior privilégio que você teve na vida? Uma vez um amigo me disse que desistiu de tentar o suicídio depois de me ver sorrindo, feliz e seguindo com a minha vida, mesmo tendo perdido as mãos e tendo, talvez, muitas razões para reclamar. Há pouco, ele se casou e tem uma família. Compartilhar a mensagem de que vale a pena viver não importa o que aconteça: esse é o maior privilégio da minha vida.

E o contrário? Ter conhecido as drogas. Erro que parei de cometer há nove anos e que quase acabou com a minha vida.

Os fatos o modificaram? Aprendi que não preciso buscar a felicidade em lugar algum. Drogas, pessoas, dinheiro, nada disso. Ela sempre esteve ali, a alegria sempre esteve comigo – bastava escolher ser feliz.

Mariana Goldfarb, 27, modelo e apresentadora
A carioca apresenta o programa Ilhas paradisíacas ao lado de Karol Knopf no canal Off e é namorada do ator Cauã Reymond. Foi Trip Girl em janeiro de 2013.

Trip. Se considera uma pessoa privilegiada? Sim e eu agradeço por isso.

Qual o maior privilégio de sua vida? Trabalhar e viajar. Tenho essa oportunidade por meio dos meus programas no canal Off. Conheci lugares e culturas com os quais jamais imaginaria ter contato. Isso, sem dúvida, me faz ser uma pessoa melhor.

E o contrário? Encarar a doença de perto: recentemente a minha avó foi diagnosticada com Alzheimer.

O que é privilégio para você, hoje? Privilégio pra mim é acordar (cedinho) com a casa silenciosa e sentir a luz do sol (quentinha) entrar pelas janelas. É também descer a rua onde moro e botar os pés na água do mar.

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