Paulo César Pereio

por Nina Lemos
Trip #170

O ator gaúcho tira a máscara do personagem Pereio e revela sua face menos conhecida


Ele não usa carteira. Muito menos bolsa, mala ou mochila. Quando viaja para o Rio de Janeiro, cidade onde moram três dos seus quatro filhos, leva apenas um cartão de crédito e uma carteira de identidade no bolso.O ator gaúcho Paulo César Pereio não guarda dinheiro, não tem carro, não leva bagagem quando viaja e não quer mais saber de relacionamentos. Mas não se considera um homem livre, e sim um resistente. Visto como o maior porra-louca do cinema nacional, ele tira a máscara do personagem Pereio e revela sua face menos conhecida na entrevista à Trip

Isso, tratando-se do ator “maldito” que carrega um currículo de mais de 70 filmes em seus 68 anos de idade, pode até ser muito “peso”. Pereio sente saudades da época em que era possível viver sem documento algum. “Hoje até para trocar um cheque você precisa de identidade, porra”, diz Pereio, com a experiência de quem viveu “uns dez anos” sem RG, carteira de motorista ou coisa que o valha. “Mas não lembro como era porque estava sempre drogado.”

Pereio não tem carro. Vive bem em um quarto-e-sala no centro de São Paulo, com terraço e vista para os prédios da cidade que adotou há dois anos. A chave do apartamento fica na Toca da Raposa, boteco ao lado do seu prédio que faz as vezes de escritório. “O pessoal do bar já sabe para quem pode entregar a chave.” Entre os agraciados com tal liberdade, estão amigos de longa data, como o cineasta Neville de Almeida, amigos mais jovens, seus filhos Lara, Tomás e João e, também, uma “moça da night”.

Apesar de ter conta no banco, “porque velho adora ir a um banco”, Pereio não guarda dinheiro. “Quando ganho uma bolada, gasto tudo, não sei guardar, quero me livrar daquilo, gasto com noite, com puta.”

O galã que fez par romântico-sexual com Sonia Braga no clássico Eu te amo (1982), de Arnaldo Jabor, sempre seduziu muitas mulheres e foi casado três vezes. A mais famosa e tempestuosa união, com Cissa Guimarães, mãe de Tomás e João, virou notícia quando Pereio foi parar atrás das grades por falta de pagamento de pensão. Hoje, Paulo César também está livre do amor. “Estou muito cansado para ter um relacionamento, prefiro a minha solidão.” Ele faz uma pausa. E depois diz: “Mas também muito cansado para a minha solidão, parece poesia isso, não?”.

Apresentador do Sem frescura no Canal Brasil, locutor e ator requisitado (está em cartaz com o filme Nossa vida não cabe num Opala, de Reinaldo Pinheiro), Pereio sabe que vive dentro de um personagem criado por ele próprio. Várias vezes durante a entrevista se corrige. “Não vou falar isso de novo porque sempre falo a mesma coisa.” A imagem que ele criou é a de um cara que fala muito palavrão (o que é verdade) e vive alucinado em noites de boemia, sexo e drogas (o que não é tão verdade assim nos dias que correm).

Pereio acorda cedo todos os dias e faz um suco com duas laranjas. Depois, come algumas bananas. “Tomo remédio para pressão, que é diurético, por isso preciso repor o potássio.” As frutas são compradas por ele mesmo, em uma feira que fica perto de sua casa. Antes da entrevista, foi com o repórter entregar quatro cascos de cerveja no tal bar e, na hora em que se despediu da equipe, avisou que então iria preparar o almoço.

No terraço de seu apartamento, Pereio brinca de carpinteiro. Constrói prateleiras e cinzeiros com tijolos antigos. “Eu ando com umas manias de velho, tem dias que acordo com 100 anos a mais.” O “velho” não fumou nenhum cigarro, não bebeu nenhum trago nem usou qualquer droga durante as quatro horas em que esteve com a equipe da Trip. Tudo o que fez foi comer uma banana. Estava empolgado porque viajaria no dia seguinte para filmar em Paulínia, no interior de São Paulo. Mais uma vez, viajaria sem mala.

Aqui, Pereio tira a fantasia do personagem e, sentado na sala de sua casa em uma manhã ensolarada, fala sobre liberdade, dinheiro, drogas, amor e a morte da mãe, que aconteceu uma semana antes desta entrevista.

Vamos começar não pelo que liberta, mas pelo que pode aprisionar. Salário é uma prisão? Esta edição da Trip trata da liberdade.
Liberdade?

Sim, liberdade. 
Liberdade… e eu com isso?

Você tem essa imagem de um cara livre, que faz o que dá na cabeça.
Eu, não [rindo].

Você não é uma pessoa livre?
Não, é muito mais pela resistência do que pela idéia de liberdade mesmo. Porque tenho a impressão de que, se um dia propuserem pra qualquer pessoa a liberdade absoluta, ela não saberá o que fazer.

Resistindo a quê?
É a idéia de não chegar na hora. Você sabe que se diz que a pontualidade é cortesia dos reis. O rei não podia chegar atrasado, a única cortesia que ele se permite é chegar na hora. Ninguém vai chegar com o rei dormindo. Não, que história é essa? Vai encontrar o rei com coroa e tudo. Quer dizer, essa é a idéia de pontualidade, a idéia de rebeldia é outra. É o cara deixar o rei esperando e não ir.

Você chega na hora ou deixa o rei esperando?
Mas não é que seja uma liberdade, afinal de contas tem a responsabilidade também. Sartre defendeu muito essas idéias, né? O tal do existencialismo, tem até uma marcha de carnaval que fala assim “chiquita bacana lá da martinica, é existencialista com toda razão, só faz o que manda o seu coração”.

Tem outra coisa que te prende: você não consegue escapar do próprio personagem. Você tem noção de ter criado o personagem Pereio?
Eles me chamam de lenda viva. Eu já comecei a implicar.

Lenda viva?
Tenho que falar sobre drogas, sempre tenho que falar sobre drogas.

E sexo.
E falar sobre sexo. Eu descobri vários eus diferentes. Você tem uns amigos que bebem e mudam completamente. Tem gente que parece que é um amor de pessoa e quando bebe fica um horror. É verdade que as drogas não têm nenhuma concorrência de personalidade. A droga não é uma personalidade. Você cheira cocaína, você muda para outro tipo de pessoa, de uma pessoa tímida fica cheia de vida, certas mulheres que são recatadas perdem o recato com álcool. Acho que o álcool é mais do que cocaine. Já que ninguém pergunta nada sobre drogas, eu vou falar então espontaneamente.

Parece que você está sempre controlando o personagem, não?
Claro. Eu tento, tanto que isso é uma revelação, quer dizer, eu tô dando bandeira de certa maneira... Tem um hábito de muitos atores de falar assim: “ele”, se referindo ao personagem. Eu tento falar “eu”. Porque é uma boa maneira de começar a fazer bem um personagem.

"As pessoas me chamam de lenda viva. Eu já comecei a implicar. Sempre tenho que falar sobre drogas e sexo."

Em algum momento ele fugiu do controle, o personagem Pereio?
Eu queria que ele fugisse do controle. Porque fica mais fácil. Porque controlar dá trabalho, a idéia de controle é a seguinte: se eu me controlar, eu controlo a situação. É um pensamento mágico, não é que funcione necessariamente, entende? Eu posso me controlar e não estar controlando a situação, mas a idéia é essa, o pensamento mágico, se eu me controlo, controlo tudo.

Sua casa é aberta?
É. Tem muita gente que tem a chave daqui. Eu deixo uma chave inclusive na Toca da Raposa [o bar e restaurante ao lado do prédio onde mora]. O Neville de Almeida, ele tem a chave. Mas aí quando vai embora pra casa dele me devolve a chave. Mas os meus filhos não devolvem. Eles levam e depois perdem lá no Rio. Meu irmão também, ele também não devolve. Quer dizer, não tem esse hábito.

Você leva muita coisa quando viaja?Não, eu vou pro Rio sem nada. Eu já tenho cartão, cartão de crédito, já não é tão livre porque tenho cartão de crédito. O lance também que te limita um pouco é o orçamento; você pagou os juros, mas se livra do orçamento. Eu não tenho dinheiro no banco, mas assim mesmo eu compro.

Você dirige?
Automóvel? Dirijo, mas não possuo, não uso.

O carro também prende você?
Mulheres têm muito carro. Todas têm carro.

Você anda com algum documento?
Eu ando. Olha, passei 12 anos dirigindo, mas sem carteira de motorista, sem documento, sem porra nenhuma. Era uma época que podia, entende?

Isso no Rio?
No Rio, em Porto Alegre, aqui.

"O que adianta liberar a maconha num país e não no outro? Até quando, meu deus do céu, a gente vai ter que botar maconha no mocó para viajar?"

Mas você tinha outros documentos?
Não, não, eu fiquei um tempão sem documento nenhum.

Quanto tempo?
Não sei, uns dez anos, sei lá, eu digo dez anos, mas eu nem me lembro mais como é que foi, eu estava sempre meio drogado. Tudo bem, quer dizer… estamos aí! Agora estou careta.

Essa pessoa careta está mais organizada hoje?
Não, não.

Nesse sentido de banco, documento?
Não. Sou uma desordem. Eu fico pensando nisso porque tem dia que me dá muito trabalho, porque tem o lance ecológico e econômico. Eu comecei agora a não querer mais saco de lixo e, pronto, vou ter que resolver isso.

Está preocupado com o planeta?
Não, é que… eu penso nisso, por exemplo, não trago mais tanto saco de lixo pra casa. O cara me dá o jornal e uma sacola plástica. Eu não quero sacola.

Mas você teve uma crise, ficar se dizendo que "está tudo indo para o buraco, preciso fazer a minha parte", essas coisas?
Não, eu penso assim. É como o negócio da liberação da maconha, o que adianta liberar num país e não no outro? Até quando, meu Deus do céu, a gente vai ter que botar maconha no mocó pra viajar, chega disso!

Você teve problemas do coração há pouco tempo?
Não, não é problema. Há muito tempo que uso marca-passo. Era para durar sete anos, na verdade fazia nove, eu já tava com ele vencido.

Foi isso que te fez ficar careta?
Não.

Você não está nem bebendo?
Não.

Nada?
Nem fumando cigarro.

Nem um baseado?
De vez em quando num baseadinho eu dou um tapinha, mas não compro, não vou atrás.

Você vai ao banco?
Tenho uma boa relação com o gerente e tal, é uma boa relação... velho gosta de banco.

Por quê?
Não sei. Mas pode reparar. Velho tem duas contas, para poder ir ao banco de manhã e de tarde. São os prazeres do cotidiano, da rotina. Rotina não é só aquela chata, da gravata te enforcando. Tem outra. A gravata é o nosso detalhe, é onde o homem pode desmunhecar um pouquinho [risos].

Você tem uma mesa de marcenaria no terraço. Gosta desse tipo de atividade?
É coisa de velho. Velho gosta de mexer com coisas. Eu tenho várias personalidades. Às vezes acordo com 100 anos a mais e fico em casa com as ferramentas, escrevendo poesias.

E tem vezes que você acorda mais jovem?
Sim, mas aí eu nem percebo. É uma coisa que rola. Só depois vou me dar conta de que eu estava muito feliz andando sorrindo pela rua e falando com as pessoas.

Quais são os outros prazeres da sua rotina, além do banco e da marcenaria?
Um suco de lima... eu estou até emagrecendo. De manhã, faço suco. Eu tinha uma espécie de ritual, todos os dias comia duas ou três limas, foi com o tempo que fui chegando a essa perfeição do suco de laranja… Não pego gripe, não pego porra nenhuma, porque é uma ou duas limas por dia.

Você acorda muito cedo?
Sete, oito da manhã.

Tem algo que você faz todo dia, rigorosamente a mesma coisa?
Eu tenho que comer duas bananas por dia porque o remédio que tomo pra pressão é diurético, então ele tira o potássio. A banana é uma fruta com fonte de potássio, então tem esta rotina: duas, três bananas por dia, duas, três limas por dia, uma pêra, e aí nem almoço. Vou levando pra frente, mas faço uma boa refeição diariamente, me permito tudo, até não deveria, mas me permito tudo, qualquer coisa, tudo significa qualquer coisa.

Você foi do partido comunista?
Sim.

Com carteirinha?
Sim.

Por quanto tempo?
Não sei, não sei, naquela época era como respirar, como ir ao cinema, tinha que ter uma participação política, a gente viveu por muito tempo uma ditadura militar, quer dizer, não chiar era uma coisa esquisita.

Mas você freqüentava?
É, tinha reuniões, tinha esquema de célula de base, e eu não tenho condições de te explicar como era o Partido Comunista, eu não fui um comunista...

Mas você teve carteirinha.
Mas todo mundo tinha uma participação. Durante 20 anos de ditadura militar, de alguma forma você participava, então você passava lá, se filiava, mas eu não era um comunista, era um artista que tinha que se filiar de alguma maneira. Eu também freqüentava puteiro, não sei até hoje como é que é puteiro, mas eu freqüentava. De vez em quando me surpreendia no meio de uma suruba e dizia assim: “Porra, mas ainda não tirei a gravata?”.

Quando você pensa hoje nessa história do partido comunista, você acha que era tudo um tédio?
Não, era interessante porque eu achava que a gente estava participando de uma utopia, tinha um regime no Brasil muito inóspito, muito desumano. E a gente como artista, todo mundo de certa maneira, dava uma resposta para isso ou concordando ou descordando.

Chegou a ser preso nessa época?
Fui, fui preso quando aquele embaixador americano, Charles Elbrick, foi seqüestrado [1969].

Por que você foi preso?
Não sei, eles me perguntavam isso. Eu dizia: “Não sei, eu não sei, eu estava no Gigetto [restaurante tradicional de São Paulo] e fui preso”.

Por quanto tempo?
Fiquei oito dias, Operação Bandeirantes [centro de informações, investigações e torturas montado pelo exército].

Você ainda tem algum envolvimento político hoje?
Não, eu sou bem espectador.

Você acompanha política?
Tenho meu amigo Gabeira. Já naquela época eu era amigo do Gabeira.

Você é um espectador porque acha divertido?
Eu gosto de fazer campanha.

Você fez muita campanha, não?
Muita não, eu trabalhei bastante com o Brizola, e eu gostava muito dele.

Por quê?
Não sei, gostava. Esse negócio de gostar é... Depois eu vou justificando por que eu gosto, porque eu achava um homem interessante, tinha uma certa sinceridade, sabe? O universo dele, do Brizola, era muito estranho.

Qual era?
Ele era muito maluco, todos que acreditavam na constelação da família Brizola era pirado.

Você vota onde?
Eu voto aqui em São Paulo, pertinho de casa, eu voto sempre. E na realidade o voto no Brasil não é obrigatório, porque o que você paga de multa é R$ 3... R$ 3,50. É mais barato que o ônibus, se você pegar um ônibus para votar e outro para voltar, você vai pagar mais caro.

O que você acha dessa euforia agora, mais uma vez o "Brasil Potência"?
O Brasil tem mais importância fora do Brasil do que dentro do Brasil. A coisa aqui é muito injusta, a coisa se revela muito injusta e muito pouco técnica. Por exemplo, excessivamente politizada a administração pública, né?

Você comentou há pouco do diretor Neville de Almeida, que ele fica na sua casa. Cinema é o que mais te interessa mesmo?
É, eu estou lançando um filme: Nossa vida não cabe num Opala.

Você gosta do resultado?
Gosto. O filme é a desagregação de uma família. Uma constelação familiar que já está desagregada na sua origem, no seu nascimento. Eu estava falando disso na estréia do filme quando me disseram que minha mãe tinha morrido. Eu estava dizendo: “A mãe é o maior inimigo do homem”. Aí tocou o telefone: “Pereio, a mãe foi-se”. A mãe foi-se, agora já está dito, coitadinha da velha, agora que ela estava com 90 anos e não reconhecia a si própria no espelho. É um episódio, e marca um capítulo que aparece no fim, né?

Ser um ator em sua família foi algo tranqüilo?
Meu pai não foi muito palatável, mas aí que se foda. Eu queria, meu pai não queria, então “até logo, papai”. Eu saí de casa rapidinho, porque não dava para conviver com uma pessoa que pensa que teatro é coisa de mulherzinha.

Você gosta de filmar sempre?
Gosto, gosto. Eu estou lançando um filme e estou fazendo outro, porque as pessoas, é engraçado, o público brasileiro vê os filmes na televisão: Canal Brasil ou Globo, ou antes na Manchete. As pessoas me vêem e lembram do tempo que elas iam ao cinema, mas elas não vão mais. Cinema caiu muito.

Você nunca fez muita novela, não é?
Não. Não fiz novela, não. Eu tentei fazer novela na minha vida e nunca passei de três ou quatro capítulos. A televisão tem uma organização à qual eu não me adapto.

O que fazia você não se adaptar?
A questão da liberdade. Eu tenho que ter a liberdade de não estar preso. Quando você faz novela, durante um período da sua vida você pertence àquilo. E aquilo não tem um nível que se compare ao nível estético e intelectual das coisas que você ama, certo?

E você saía das novelas causando confusão?
Sei lá, nem lembro, eu desaparecia. Quando me ligavam, não atendia, essas coisas.

E com o cinema?
O cinema é um casinho. Você se apaixona por uma pessoa, aquilo dura o tempo que você consegue agüentar. Depois aquela pessoa te conhece melhor e se ela quiser você fi ca com ela. Mas é o período da paixão, é curto.

Você gosta do atrito?
Eu não sei, eu estou supondo isso, entende? Que eu tenha uma atração pelo atrito.

Mas você vive do quê? Do cinema, da publicidade?
Aqui em São Paulo eu preciso trabalhar muito menos, porque eu trabalho em publicidade.

Principalmente com a voz?
Sim, sim, principalmente com a voz.

Quando te ligam, o que te falam?
Quanto é que você cobra? Porque gostam de trabalhar também com dois números. Quanto é que você quer e quanto eles querem te dar. Quanto eles querem te dar eles sabem, mas eles não dizem.

Você já deve ter ganho o bastante.
Sou ruim com dinheiro, parece que eu não quero lidar com o dinheiro, então me livro dele, eu estou sempre sem dinheiro.

Como você se livra dele?
Gastando, torrando.

Torrando na noite com amigos?
Não, em geral com os amigos eu tenho uma relação mais equilibrada.

Quando você pega um dinheiro, você vai lá e gasta tudo?
Torro. Eu torro com puta.

Com boemia?
Com boemia.

Falando da grana, tem o episódio de você ter ido para a cadeia a pedido de uma de suas ex-mulheres (a atriz Cissa Guimarães). Você se dá bem com todas elas hoje?
Não tem por que eu não me dar bem. Eu acho que ela [Cissa] tinha toda razão. O motivo da prisão é que eu não estava pagando a pensão para as crianças. Na ocasião eu tive um acidente e perdi quase todos os meus dentes. Naquela época eu estava cuidando de mim. E também a moça que eu estava namorando ficou grávida. Foi mais um filho que eu tive, eu reconheci e tudo, mas ela foi embora com o menino. Mais tarde eu voltei a me relacionar com essa moça, com meu filho, quando ele tinha 6 anos, mas estava muito melado já, ela agora está ficando na Bahia. Eu não o vejo.

Você é muito próximo dos outros três filhos, não é?
Sim, somos muito amigos. Eu tive a sorte de ter esses filhos que não são pessoas com quem eu devo me preocupar.

Com quem você se preocupa?
Comigo mesmo.

E eles, se preocupam com você?
Eu acho que sim. Às vezes eu vejo um olhar de preocupação. Vislumbro mais isso no João. Ele é um pouco paternalista. Mais que eu. Mas eu sempre tive muito prazer e muito orgulho de ter filhos, eu procuro educá-los. O orgulho maior é ter filhos bem-educados. Filhos bonitos, foda-se. Mas bem-educados, que coisa boa, né? E é difícil porque ninguém sabe direito o que é educar.

Sua filha, Lara, dirige o seu programa. Como é trabalhar com ela?
Eu diria que a minha filha é o meu patrão. Se bem que eu repeti muito isso, entende? Então já está na hora de eu dizer outra coisa, sei lá, que ela é como uma mãe. A Lara foi para Nova York há dez dias e eu quero saber dela. Ela só dá notícias quando quer, mas aí eu ligo para a casa dela e pergunto onde ela está para a empregada. Vou fazer isso agora [Pereio pega o telefone, liga para a filha e dá a notícia de que a avó, a mãe dele, morreu].

Você tem oficialmente três ex-mulheres, é isso?
São três porque são pessoas com quem eu tive filhos, mas passou muita mulher por aí.

Cansou de casar?
Eu prezo muito minha condição de homem solteiro. Eu estou muito cansado para suportar companhia. Eu estou procurando uma espécie de solidão porque estou muito cansado pra sentir também, isso seria quase um poema. Mas é isso mesmo, eu estou muito cansado para ter companhia, eu não tolero.

Você é um cara que sofre por amor?
Eu acho que sim, por um período romântico que durou bastante tempo e chegou até a atrapalhar a bola da vez.

Se libertar desse romantismo é bom? 
A vida fica até mais serena, né? Você já percebeu quando você se apaixona e fica torcendo pra passar?

Você gosta de ser mais velho e ela mais nova?
Não, não, para mim foi sempre a mesma idade, entre os 30 e 40 anos. Quando eu era jovem já gostava, e eu sou mais velho e continuo gostando das mulheres de 30 e 40 anos, quer dizer, é como se fosse uma espécie de abstração.

E o que tem a mulher entre 30 e 40 anos?
Não sei, eu estou procurando isso dentro de mim. Seja lá quem for, se tiver dentro desses padrões tudo bem [risos].

Você já teve um grande amor?
Acho que não, acho que não amei, são vultos que vão passando. Eu tenho uma série, um montão de amigas, eu me relaciono com o feminino assim, eu tenho um montão de amigas que eu abraço, choro, que elas choram e são bonitinhas, são queridas. Eu tenho mais amiga mulher do que amigos homens.

Já foi fiel alguma vez?
Eu acho que sim.

Quando estava num casamento?
Eu acho que existe fidelidade à paixão, mas a uma pessoa… agora neste momento da minha vida eu poderia ser fiel, mas agora eu não estou interessado em mais ninguém. Quer dizer, esse tipo de trato eu não quero mais fazer, porque eu acho que não é pra mim.

Tem a cobrança de ligar, saber se alguém te ligou.
Está bem, eu não sou livre, não tenho sido até agora, mas vou caprichar para ver se eu consigo pelo menos um simulacro do que seja liberdade. Por exemplo, cumprir os horários, mas cumprir na maior, sem estar contrariado por causa disso.

Você gosta de trabalhar?
Eu gosto de filmar, de todo o ritual. Eu gosto de combinar o cara que vem me pegar em casa numa van, vai me levar até Paulínia e aí lá eu vou pra maquiagem, tudo isso com prazer.

Estar com os colegas no set?
Eu fico vendo esses filmes que o GNT veicula, a história de Judy Garland, a história de não sei quem, sabe aquelas angústias, aquelas histórias de procurar comprimido e bolinhas e álcool não sei o quê, você diz assim: “Meu Deus do céu, eu vivenciei um pouco essa história e está me fazendo mal assistir a esse troço. Por que eu não era feliz?”. Outro dia eu tava sofrendo por causa de finanças, aí fiz um cálculo e está tudo pago.

Paranóia?
Ah, algo como “esse dinheiro vai acabar e eu vou ficar sem dinheiro”. Porra, maluquice. Quer dizer, eu peguei emprestado essa loucura dos outros, a piração também contamina. Participei de uma luta que acabou no ano passado, antimanicomial, eu cheguei a fazer filmes em brasília com uma turma de psiquiatras jovens, ainda tem por aí uns manicômios, mas é o que sobrou porque ainda tem um monte de gente que não tem aonde ir.

Você falou desses momentos de muita angústia, entre outras coisas. Agora você está menos angustiado?
Sabe por que é engraçado? Eu achava que eu estava vacinado... Mas eu ando angustiado por causa da morte da minha mãe [começa a chorar], morreu com 90 anos e não se reconhecia mais no espelho. Na minha cabeça ela só tinha se deslocado, entende? Só tinha desocupado um espaço.

Você se achava vacinado do tipo “já sofri tudo, agora não sofro mais”?
Eu pensava: estou vacinado contra a morte da minha mãe. Minha mãe morreu e eu fiquei mal. Tinha ido a Brasília pra ver a febre que ela tinha tido lá, uma semana antes.

Ela estava em Brasília?
Eu fui lá e não fui vê-la porque ela estava no hospital e era complicado. E eu enchi a cara, enchi a cara, enchi a cara. Já achei que eu estava vacinado, mas não tava não. E nunca vou estar, a gente angustia.

Você acha que as pessoas têm medo de você, você percebe isso?
Eu percebo. Mas eu também criei um pouco isso. Claro, porque, imagina, uma das condições do que acontece com os atores quando começam a ficar conhecidos é que todo mundo fica íntimo.

Aconteceu com você?
É, eles vêm falar. Eu estou tentando me conhecer há mais de meio século e nem comecei a levantar a ponta desse negro véu. Mas de repente as pessoas me tratam com uma intimidade que não têm, então eu estabeleço uma carranca meio que pra mantê-las afastadas.

E isso funciona?
Não.

Elas chegam mesmo assim?
Mas eu tenho que elaborar isso, né? Eu não posso deixar também de ter minha vida cotidiana normal, ou minha noite também cotidiana, sair por aí, andar na rua – inclusive as pessoas dizem: “Cuidado, você anda na baixa Augusta, na Liberdade. Aquilo lá é tudo muito perigoso”. Mas eu não tenho medo de nada, eu tenho é covardia. Geralmente acontece alguma coisa que me acovarda e, quando dou por mim, já estou longe.

Você acha o assédio mais tranqüilo aqui em São Paulo? Porque no Rio tem essa coisa de indústria de celebridades...
Mas no Rio todo mundo está muito acostumado porque a Globo há muito tempo é lá, e agora a Record também abriu os estúdios no Rio, quer dizer você encontra os atores e as atrizes na praia, pelados. Inclusive, se você quiser comer o cu de um ator famoso, você come o cu do ator famoso, porque eles saem pelo Rio pra dar a bunda muitas vezes.

Na época do filme eu te amo (1982) você foi um galã. Como é isso?
Não sei [risos].

Tinha muito assédio, as mulheres ficavam em cima, como era?
Eu sempre fui um cara que, nesse tocante aí, sempre me desdobrei direito. Mas o cinema, celebridade, tudo isso, fama, sempre foi uma interferência, na verdade, nunca foi uma coisa na qual eu me calçasse pra me dar bem. Nunca aconteceu.

É até um efeito meio ruim?
Na época eu reagia a isso brutalmente e eu não me achava bonito, quer dizer, ninguém se acha né, a gente nunca sabe direito como é que é, parece que tem até uma síndrome dessas mulheres belíssimas que acham que têm a bunda grande demais, a bunda pequena demais, vivem fazendo plástica.

Você nunca se viu como um galã?
Não, eu sempre desconfiava muito dessa história. Até hoje eu tenho assédio, mas tem que conviver com isso, a gente tem que ter a vida pessoal, sair na rua, andar a pé.

Mas tem isso de uma mulher querer ficar com você porque você é o Paulo César Pereio?
Claro, isso aí é desfavorável. Mas a gente com o tempo aprende a se livrar dessas coisas.

E percebe logo?
Claro. Eu não sei exatamente o que é essa entidade Paulo César Pereio. Eu sei que eu sou cúmplice nessa construção, mas não é nítida essa mitologia. É embaçado.

Você é vaidoso, não é?
Sou, eu gosto de andar bem arrumadinho.

Você gosta de comprar roupa?
Não muito, não. Nunca foi assim, nunca me concentrei nisso aí. Mas eu gosto de moda, eu gosto de observar a moda, o que está na moda, o que entrou, eu gosto de observar nas pessoas como elas se vestem.

Eu não sei exatamente o que é essa entidade paulo césar pereio. Sou cúmplice nessa construção, mas não é nítida a mitologia

E vaidade física de envelhecimento, de entrar em crise com isso?
Não, não, isso aí não. Eu nunca cheguei ao ponto de não me aceitar. A gente tá sempre mudando. A cara que eu tinha quando adolescente eu não tinha mais quando homem maduro, hoje eu tenho saudade quando eu era maduro. Eu estou na terceira idade. Tô com 68 anos, quase 70, e recomendo essa idade pra todo mundo. Tem uma certa arrogância da parte das pessoas mais novas. Eu achava quando era menino que velho era uma espécie de desaforo, e o meu nome é velho, o meu nome é Paulo César Velho. Meus filhos, João Velho, Tomás Velho, gostam muito e usam. É um nome legal, Velho eu acho um nome legal, mas eu nunca usei esse nome, eu achava estranho o meu pai encontrar com um cara e ouvir: “Oi, seu Velho, como é que vai, seu Velho?”. Eu achava aquilo estranho, era como se fosse um esculacho. Não é.

É que demora um tempo, jovem tem essa arrogância.
Tinha até aquela do Martin Fierro: “o diabo sabe por diabo, mas sabe mais por velho”.

E esporte, já tentou fazer algum?
Natação e salto ornamental.

Salto ornamental?
Eu tenho até medalha.

Então você era bom?
Eu nunca fui bom em nada de esporte, mas sempre passeei por todos.

E hoje em dia?
Hoje eu não faço mais nada, eu caminho.

Você joga sinuca toda segunda?
Não, jogo mais, eu jogava. Tem períodos que eu jogo todos os dias, e tem períodos que não.

E a questão da nostalgia, aquele “na minha época era bom”?
Bobagem, que bobagem. Eu sei que é difícil, sabe, mas eu procuro me adaptar. Você viu que eu vim morar em São Paulo, eu quis morar no centro, aqui não piora não. Sabe, eu me lembro que minha mãe, quando comprou um apartamento lá no bairro de Porto Alegre chamado Mont Serrat, que era todo de casinhas de madeira, chalezinhos assim muito bonitinhos, ela chegou à sacada e um amigo do meu pai disse assim: “o pai caçava perdiz ali” e apontou para uma selva de pedra. Então esse perigo eu não corro. Ninguém mais constrói prédio aqui.

Aqui não vai piorar?
Vai melhorar inclusive. Aqueles prédios enormes, como têm aquele ali [apontando], agora não podem fazer mais. Essa vista que eu tenho para a Paulista, assim, não vai piorar.

Morte é um pânico pra você?
Não, eu tenho que conviver com isso, né?

Para quem não acredita em Deus, como você, já começa a ficar mais complicado?
Pior é que às vezes a gente espera a morte e, por via das dúvidas, usa a roupa de morrer. O melhor sapato, o melhor terno, por via das dúvidas faz a barba e tal, capricha na figura porque pode não ser convidado pra essa festa depois da morte.

Você não acredita que vai ter essa festa depois da morte?
Eu acho que não. Não sei mais.

Vai que tem.
Por via das dúvidas bota a roupa de morrer, faz a barba, dá uma caprichada, se achar que tá longe do centro leva uma grana para o táxi.

O que você acha quando todo mundo te olha, ou olha teu personagem, como a gente estava falando, e diz “Pereio é o cara livre. Pereio é o cara que faz aquilo que quer”? O que tem de real nisso?
Tem uma coisa aí que você volta pro início desta entrevista, que foi a idéia de liberdade, não é? E eu pipoquei aí pelo existencialismo. A idéia de liberdade absoluta, quando a gente fala de liberdade o vocábulo absoluto tá por aí, então a gente reflete anos a respeito do assunto sonhando com a liberdade absoluta, que não existe. Você está preso a horários, você está preso a suas manias, você está preso a relacionamentos em que você combinou alguma coisa. Você já percebeu o texto do casamento? Até que a morte os separe, vai segurar esse encrenca, meu filho? Hã, até o túmulo e ainda vai chorar no enterro?

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