Rapper fala sobre seus heróis, projetos recentes, redes sociais e 15 anos do seu histórico primeiro álbum solo, ”Raciocínio Quebrado”
Desde 2016, há um acontecimento que vem se tornando tão tradicional para os fãs de rap quanto os filmes de Star Wars no período natalino para os amantes da franquia norte-americana: os lançamentos de começo de ano do Parteum. Com produções enxutas, Fábio Luiz, rapper, produtor audiovisual, beatmaker e um dos nomes mais cultuados do rap nacional, iniciou 2020 com os ‘polinômios musicais’ “MMXX” e “Addendum”. As faixas, acompanhadas dos instrumentais “01010000”, “Jedi”, “Wow”, “01000111” e “01010000, Pt. 2”, foram produzidas pelo selo Mudroi e cercam as duas letras, que são certeiras, sofisticadas e subjetivas. Características clássicas do estilo Parteum de rimar.
No seu jeito sem pressa de produzir, gerou quatro álbuns solo de respeito, tratados como ícones por outros artistas da cena: Raciocínio Quebrado (2005), Magus Operandi (2008), A Autoridade da Razão (2010) e Mídia Prata/Prata (2015). E o MC de 45 anos, que fez história nos anos 2000 com o grupo Mzuri Sana, formado por ele, Secreto e DJ Suissac, continua fazendo arte sem parar. Mas, segundo ele, “sem a vontade de transformá-la sempre em um produto vendável”.
Envolvido com o rap desde a era de ouro do hip hop, por conta do skate, Parteum permanece cultivando sons e imagens da sua forma, colocando nelas muita coisas que adora, como as referências à saga Star Wars, ficção científica e sua família. Há também extrações introspectivas e versos sobre situações corriqueiras, muitas vezes fruto do que observa, reserva em seu bloco de notas do celular e compartilha com sua rede.
Na conversa com a Trip, Parteum falou sobre os últimos lançamentos, os 15 anos do lendário Raciocínio Quebrado e sobre os motivos que o levaram a reduzir o ritmo em suas produções musicais.
Trip. Como se deu a construção de “MMXX”? Há quanto tempo estava trabalhando neste projeto?
Parteum. Eu mantenho o mesmo modus operandi desde o meu primeiro trabalho musical… Pego anotações que faço durante um tempo e transformo em música. Hoje em dia, preciso dizer, ficou mais fácil. Até a ideia de uma melodia eu consigo gravar no celular primeiro e depois, a partir desse registro inicial, criar algo mais legal, com timbres melhores e tal.
Logo em seguida você lançou “Addendum”. Como ele complementa o “MMXX”? É um simples adendo ao que criei nos últimos dias de 2019. Eu já venho praticando isso faz algum tempo. Basicamente, passo os últimos dias de cada ano escolhendo arquivos pra uma pasta que faço todo começo de mês… Timbres, anotações, frases de filmes e séries que assisti. É a partir dessas informações que crio a pasta do mês seguinte. Perto da virada do ano, intensifico esse processo.
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“É sina do Brasil ser gigantesco pilotado por gente sem juízo/O império contra-ataca, mas eu sempre fui Jedi”. O Parteum sempre pertenceu ao “lado da luz”? Quais processos te levaram a se transformar nesse Jedi que fala no som? A ideia (quase) principal de Star Wars é que os dois lados da Força existem, se conhecem e se encontram de tempos em tempos. Os Jedi conseguem manter o equilíbrio. Acho que a maioria da humanidade faz ou almeja algo parecido. É preciso equilibrar tudo. Obviamente, me colocar na posição de uma casta fictícia da minha série favorita de filmes (e livros) é um ato de liberdade e humor.
Falando em produções preferidas, no videoclipe “MMXX” você disse que há referências do seu livro predileto, o Kafka On The Shore, de Haruki Murakami. Quais outras referências você colocou no clipe? E o que tem consumido de conteúdo audiovisual que tem te inspirado? Uma cena específica do vídeo faz menção ao capítulo que mais gosto desse livro do Murakami. Não é algo literal. As trilhas de Hans Zimmer, Wendy Carlos, John Williams e Quincy Jones, uma série de instrumentos virtuais de uma empresa chamada Spitfire Audio tem me inspirado bastante. Além disso, tenho grande carinho pelos vídeos de skate dos anos 90, quadrinhos da Marvel e da DC… Minha filha, Cora, também me inspira diariamente.
Continuando nessa conversa sobre inspiração, quais artistas/músicas você estava ouvindo quando criou “MMXX” e “Addendum”? Cocteau Twins, Red Hot Lover Tone, The Church, Dag Nasty, August Greene, Tom Zé, Djavan e Vinicius Cantuária.
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E quais está ouvindo agora? Uns sons novos do Amiri e do Deryck Cabrera, Stevie Wonder, Itamar Assumpção e a trilha de “Be Kind Rewind”, de Jean-Michel Bernard.
No Programa Freestyle, em 2016, você disse que se ouve e não gosta de uma música sua a descarta na hora, sem pensar em ajustes. Ao longo desses anos isso mudou? Desengavetou ou desengavetará alguma produção antiga? Acho que não. E estou reformando minha sala de gravação. A ideia é produzir bastante, seguir pensando em novas formas de fazer música, de escrever, de fotografar… Se algo não era bom o bastante pra ser lançado quando eu criei, não sendo algo realmente especial, como uma ou outra faixa que gravei e não lancei no meu primeiro álbum solo, não vejo razão pra desengavetar.
Como você encontra um equilíbrio entre o “se importar demais” e o “não ligar para nada” na hora de criar. Você o encontrou? De novo, o lance do equilíbrio... A gente fica buscando isso a vida inteira. O que sei é que, se eu me preocupo demais, eu não saio do lugar.
E o seu processo criativo mudou? Não, só as ferramentas mudaram. Timbres, programas… E o tempo que passo criando. Não tenho muito tempo pra fechar as demais janelas da vida e criar.
Existe uma composição sua que foi baseada em tweets antigos... Acha que redes sociais afetaram o seu modo de fazer arte? Acho que o processo se tornou menos misterioso. Artista, e todo mundo é um pouco artista, gosta de compartilhar.
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E o Instagram continua a sua rede social preferida? Já deixou de ser. Tem uma outra rede menos conhecida, Ello, que me parece mais legal. Ainda não tem anúncios a cada três posts...
Ainda falando sobre redes sociais: você publicou um texto recentemente em que discorreu sobre a preferência por produzir trabalhos menores. Citou um projeto realizado por meio da “desconstrução” e destacou que um álbum poderia estar espalhado no meio desses exercícios que tem feito. Quais motivos o fizeram “enxugar” suas músicas? Foi o jeito mais confortável que eu achei pra continuar criando. Eu passo boa parte do dia cuidando do catálogo do selo, da editora, de um ou outro trampo de vídeo que faço. Tenho passado menos tempo fazendo música, vamos dizer focado em um álbum de carreira ou algo do tipo. Eu sempre gostei mais de ficar fuçando timbres, conhecendo novos programas, teclados, do que estar na estrada fazendo shows. Além disso, é bem mais comum o artista, nos meios digitais, se manter relevante dando o ar da graça uma, duas vezes ao ano, ao invés de sumir e reaparecer dois, três anos depois. Isso só funciona com artistas grandes nos três espaços principais de comércio artístico: imagem, turnês e merchandising/produtos em parceria com empresas multinacionais.
Então você sempre está criando, só não tem pressa de lançar... Como lida com essa cobrança? Eu sempre tenho vontade de criar. Lançar, ou transformar o que crio em produto, esse é o departamento que não me anima tanto.
Este ano seu álbum Raciocínio Quebrado completa 15 anos. Qual a importância desse trabalho para você e para a sua carreira? Pois é... Estou mexendo nas mixes abertas do álbum. É o meu primeiro álbum solo. Foi produzindo essa obra que pude dar um passo importante na vida. Vander Carneiro, do Atelier Studios, e JMB, da Trama, foram essenciais pra que eu conseguisse realizar esse sonho. Apesar de ter terminado e masterizado o álbum em 2004, só lançamos em fevereiro de 2005. Saí em tour pelo sul do Brasil, num circuito universitário, uns quarenta dias depois do lançamento.
Qual era a sua música preferida quando lançou o álbum? “Época de épicos”. Eu queria fazer algo com a ideia de repetição no instrumental, como a trilha composta por Philip Glass para Koyaanisqatsi. Acho que consegui. Gosto, ainda hoje, dos versos do Rick, do Napoli e do Marcus (Kamau).
Você conta que foi o Kamau que deu o nome do álbum, por ele achar que você pensa de um jeito não-linear. Tem algo sobre Raciocínio Quebrado que você não contou até agora? Meu vizinho, na época, era o Paulo Napoli. Além de participar do disco, ele acabou ouvindo muitas faixas antes do verniz final. Eu havia comprado meu primeiro sistema de gravação digital, trabalhava durante o dia na Trama, passava parte da noite no estúdio e ainda mexia nas minhas produções na madrugada. Eu não dormia muito.
“Essa série de obras de virada de ano começou da maneira mais orgânica possível. Diziam meus ancestrais que o que a gente realiza no 1º dia de cada ano nos acompanha nos outros 364 dias. Pensando nisso, andar de skate, jogar videogame e fazer música parecem ser excelentes escolhas de 1º dia.” Além disso que publicou nas suas redes, o que deseja para 2020? Nossa democracia em mãos e mentes menos sujas e doentes. E saúde. Muita saúde! Que assim seja, com a benção dos ancestrais.
Pois é, o Brasil tem vivido momentos políticos complexos. Para você, qual a importância de continuar fazendo arte em tempos como estes? São os artistas, desde a antiguidade, que estão contando e revelando nossos caminhos. Arte é a conexão com o divino, com o próximo, com o que importa. Fazer arte, qualquer arte, é brilhar um pouco mais. E a gente precisa seguir brilhando.