O músico e ativista Jello Biafra atira suas pedras nos EUA, na cena musical e na sua ex-banda, os Dead Kennedys

Se os Ramones são os pais do punk, este cara é o professor. Fundador do Dead Kennedys, Jello Biafra trouxe política e inteligência para dar sentido a toda fúria daquela geração raivosa anti-sistema. Assustado com o reinado de Bush II e o caminho que o mundo tomou, aquele que ainda pode sustentar a jaqueta de punk só não se desespera porque preservou algo que a própria cena que ajudou a criar vendeu – a alma

Por Bruno Torturra Nogueira

Um telefonema brasileiro para os EUA gera dinheiro e tributos para esse país. Até na ligação atendida pela secretária eletrônica de Jello Biafra, o governo americano ganha dinheiro. Dinheiro que, de acordo com a tal gravação de voz grave, ajuda a alimentar uma perversa máquina de guerra que está fadada a arruinar o império estadunidense.

Beeeeeeeep.
-Alô, Jello? ...Jello?

- Alô! Sim, sim. Posso falar agora.

É um homem de 48 anos que acha o dinheiro uma das drogas mais perigosas. Que não fala nada sem pensar, cita datas e sobrenomes de governantes internacionais com requintada precisão. O homem que é um dos mais cáusticos e influentes críticos da política de seu país natal, insuflando idéias socialistas e revolucionárias para centenas de milhares de jovens há mais de 20 anos. Que já se candidatou a prefeito de San Francisco há 27 anos. Um homem que passa seu dia lendo e escrevendo tanto que mal tem tempo para usar computador. Ele não tem computador. O homem que pode ser considerado o maior punk vivo.

Jello Biafra vive perto de São Francisco em uma casa própria sem muito luxo. Tem gravadores, muito papel e uma enorme biblioteca carregada de livros de história e política, seu assunto favorito. Até porque, para ele, política e música não são lá muito diferentes. Desde que chegou à fama com sua antiga banda, os Dead Kennedys, suas letras, fúria e uma inconfundível ironia estão a serviço da resistência ao silencioso totalitarismo que, segundo ele, faz dos EUA o triunfo do facismo.

Jello adora falar. Mesmo quando enumera vitórias de seus desafetos ele parece sentir certa alegria vaidosa, comum nos homens coerentes. Como ao se referir aos próprios “colegas” dos Dead Kennedys, hoje declarados inimigos. Ele ri ao contar como foi usurpado de suas próprias composições depois de uma batalha legal pelo controle sobre a obra dos DK. Hoje Biafra não manda nos direitos e é obrigado a ver suas músicas em comerciais publicitários, a banda em turnê em festivais pagos por grandes corporações com seu rosto nos cartazes – tudo o que sempre lutou contra. Mas Jello Biafra recomenda veementemente: “Não vá aos shows dos Dead Kennedys nem compre os discos!”.

Vez ou outra o autor recebe alguma grana desses dividendos, que usa para cobrir o inevitável saldo negativo de seu selo musical, Alternative Tentacles Records, que lança bandas do underground americano. Punks? Nem sempre. “Música criativa”, diz ele, que entre um livro e outro pode gastar tempo escutando country music, trilhas de filme ou uma nova descoberta.

A ligação de uma hora chega ao fim como uma aula magna de coerência em vida. Trinta e cinco reais o custo, direto para a conta de alguma grande corporação. Quanto disso vai para o governo americano, para o fundo que financia as guerras ou a próxima campanha de Bush, não se sabe ao certo. Certeza é que Jello vai seguir firme, mesmo que a guerra já esteja perdida, lançando discos, discursando e esvaziando seus bolsos para convencer a molecada que o segue como um pastor humanista de que a última coisa que o dinheiro traz é felicidade.

Você vota? Sempre voto no partido verde e em candidatos radicais para presidente e outros cargos. Mesmo que eles não ganhem, eu prefiro votar em algo que eu quero e não ganhar do que votar em algo que não quero e ganhar.

Então você acredita em democracia? Eu acredito em democracia, mas não acho que vivemos em uma. Os EUA são uma democracia administrada por empresas, onde até a imprensa é domada. Muito parecido com a Rede Globo no Brasil. Significa que as pessoas têm uma ilusão de escolha entre partidos, mas não interessa em quem elas votem, o povo perde e as corporações ganham. Para mim as eleições locais são as mais importantes porque é onde o dinheiro é gasto no fim das contas.

Você pensa em se candidatar de novo? Eu fui candidato há muito tempo, para a prefeitura de San Francisco em 1979. E nem naquela época eu planejei ser candidato, só veio a idéia na minha cabeça quando o baterista dos Dead Kennedys disse que eu falava tanto que deveria ser candidato à prefeitura e eu disse, “ok, sou candidato”. O falatório foi tanto que eu não pude recuar. Escrevi minhas plataformas em um guardanapo em um backstage.

Você simpatiza com a esquerda da América do Sul? Sim. Sei que Lula e Chavez são contra a Alca. Isso é ótimo, porque o Primeiro Mundo que tem todo o dinheiro já foi dominado pelas corporações. O Terceiro Mundo carrega a esperança de parar as empresas que dominam o mundo como uma ditadura feudal.

Você já pensou em deixar os EUA? Minha resposta é não. Esse é um país tão estranho e bizarro que eu não gostaria de morar em outro lugar. Onde mais um fundamentalista cristão queima um coelho da Páscoa gigante em uma praça alegando ser um ídolo profano e é preso porque a fumaça poluiu o ar? Isso aconteceu. Eu não me daria bem no Brasil, não sei se há por aí boa comida mexicana. Mas me lembro bem de como a comida italiana era boa. Aliás, me impressionou como os brasileiros comem tanto!

Sério? Eu fui a uma cantina e trouxeram pães, depois uma salada enorme, depois uma tigela gigantesca de massa e depois um prato principal. E todo mundo come tudo isso e não engorda. Apesar de o João Gordo não ser exatamente assim...

Mas você sabe que o Gordo mudou bastante? Emagreceu, faz exercícios. Isso é bom. Queria encontrar com ele novamente. Ficamos bem amigos em 1992 quando fui ao Brasil.

Recentemente o próprio Gordo foi patrocinado pela Nike para correr uma maratona. As marcas parecem cada vez mais associar sua imagem ao punk e a comportamentos subversivos como forma de parecerem “cool”. O que pensa disso? Isso eu não sabia sobre o João. Acho que cada artista deve decidir como lidar com esse assalto das corporações, mas um dia eu recebi um disco de uma banda brasileira chamada Gangrena Gasosa e fiquei chocado com a quantidade de logotipos de empresas no encarte. Sei que o Brasil é pobre e que as pessoas precisam de dinheiro, mas no meu caso sou radicalmente contra. Minhas músicas e minha pessoa não são feitas para se transformarem em comercial. Por isso eu sou cruelmente punido pelos meus ex-colegas.

Como assim? Me processaram por seis anos porque eu não deixei “Holiday in Camboja” servir de trilha em um comercial da Levi´s. Eu disse no tribunal: “Se quiserem ser prostitutas das corporações, escrevam vocês as músicas”. Mas eles disseram que as músicas eram deles também e o júri engoliu. Os direitos agora são controlados por uma firma que não respeita a posição original da banda. Eu não decido onde minhas músicas e voz serão usadas. Tocaram em um festival de uma cerveja que patrocina políticos de extrema direita. Agora eles fazem turnês com um vocalista que parece o Vanilla Ice e colocam minha foto nos anúncios.

E você ganha dinheiro disso? Algum dinheiro. Mas não sei se é tudo que eu deveria receber, já que não posso ver a contabilidade.

Você fica com a grana? Se eu não ficar, eles pegam tudo. Não acho errado eu ganhar esse dinheiro, ainda assim me sinto roubado. Porque a coisa não está sendo administrada como os Dead Kennedys, mas sim como a banda de “punk” Blink 182.

E como você gasta seu dinheiro “excedente”? Eu gasto muito com meu selo, ajudando outros artistas. Algo que adoro fazer: dar ao público um monte de música legal que está sendo feita. Meu selo, Alternative Tentacles Records, nunca, nunca deu lucro. É o que mais gosto e tem muitas recompensas.

Você é um homem rico? Não [silêncio]. Eu não nasci rico, meu pai era assistente social e minha mãe bibliotecária. Mas eram muito bons em lidar com dinheiro. A gente não gastava com coisas de luxo e brinquedos, mas guardavam dinheiro para viagens e faculdade. Hoje eu tenho mais dinheiro do que muita gente do underground e tento não guardar mais dinheiro do que o necessário.

A cena punk é decadente? Depende. Por um lado, sim. Muita gente prejudica a criatividade e a solidariedade do underground por rotular gêneros e discriminá-los. As pessoas teriam mais a ganhar se escutassem e criassem músicas sem pensar a que categoria pertencem. Talvez por isso mesmo o punk brasileiro seja tão interessante. A primeira vez que escutei Ratos de Porão e Olho Seco eu fiquei chocado com aquele som de guitarra que parecia uma serra elétrica. Me cansa escutar moleque tentando imitar o que já fizemos há tempos e ignorando novos sons.

Você se considera pessimista? Esses rótulos eu tento evitar e pensar de assunto em assunto. Se eu sou anarquista? Não exatamente. Se eu sou socialista? Talvez sim, mas não em todas as áreas. Eu tento basear minhas opiniões, minhas crenças e meu voto no que faz sentido.

Você é um homem feliz? Às vezes.

 

Na Trip #148, Jello Biafra enche a secretária eletrônica (e os cofres das telefônicas ianques) com um punhado de palavras sobre MST, Dodô e Osmar (!?!), música gaúcha, Deus, Max Cavalera e seu trio elétrico de metal, Mutantes e o futuro do mundo...

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