Professor do MIT, Otto Scharmer discute ideias para um novo mundo, defende o pós-capitalismo e prega: “Precisamos parar de discutir modelos antigos e pensar na construção de novos”
O economista alemão Otto Scharmer costuma dar conferências e workshops para públicos habituados a termos como liderança inspiradora e inovação disruptiva, mas são as novas palavras criadas por ele que costumam chamar atenção em seus slides de PowerPoint.
É de sua autoria, por exemplo, a expressão ego-system to eco-system (a transição de um sistema centrado no “eu” para um ecossistema focado no “nós”, o bem comum). Professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e autor do best-seller Teoria U (2009), Scharmer também ganhou notoriedade com o termo intraduzível presencing (misto de presence e sensing, em inglês, que se refere à habilidade de um líder de sentir e incitar no presente o futuro potencial de alguém).
O verbete inventado, inclusive, ganhou corpo: Scharmer fundou o Presencing Institute, na cidade americana de Cambridge, uma espécie de laboratório de inovação e pesquisa. Ali, o professor de 58 anos trabalha a Teoria U, que defende que toda mudança tem início, meio e fim, formando um belo “U”. Para atingir a parte mais profunda (o lombo da letra) e refletir sobre a transformação, é preciso descer a curva com “coração, mente e vontade abertos”, e depois escalar a outra ponta já usando os novos conhecimentos. Embora o conceito soe abstrato, o autor participa de projetos concretos em países como Namíbia, Indonésia e China.
“Todos estamos encarando dias sombrios atualmente, não só por abalos ecológicos, mas por disrupções políticas”
Otto Scharmer
Nascido em uma fazenda no norte da Alemanha, Scharmer viu os pais inovarem na década de 1960, quando quiseram transformar sua estância em um experimento orgânico e biodinâmico. Na adolescência, participou de protestos contra a construção de usinas nucleares. Mais tarde, mudou-se para estudar em uma Berlim dividida por um muro. Frequentemente, o estudante cruzava as barreiras para participar do movimento por direitos civis no lado leste (socialista) e do movimento de paz no oeste (capitalista), até cair no radar da Stasi, a polícia secreta alemã-oriental. “ Quando os arquivos da polícia secreta foram abertos, vi que me descreviam assim: ‘Ele inspira círculos de liderança no movimento de oposição’. Bom, inspirar, liderar, círculos, movimento, oposição – é um bom resumo do que eu estava tentando fazer e, a certo ponto, ainda descreve o que faço hoje”, diz o professor durante entrevista à Trip em seu hotel na zona sul de São Paulo.
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Scharmer visitou o país para participar de conferências e encontros, além de tentar entender o que está acontecendo por aqui. “Sei que vocês estão vivendo tempos difíceis, moro em um país governado por Donald Trump desde 2016”, assinala. Hoje, ele defende um futuro pós-capitalista, um upgrade do sistema para contemplar o bem-estar de todos. "A mudança virá de baixo para cima — e não de cima para baixo. A única forma de enfrentar os desafios que vivemos é a partir de um global grassroots movement", aposta, referindo-se a tipos de movimentos sociais que envolvem as bases da comunidade. A seguir, o autor fala sobre política, ativismo e um pouco de coragem para “abrir corações e mentes”.
Trip. O que te traz ao Brasil desta vez?
Otto Scharmer. O país é um dos maiores focos de atenção para transformação social global atualmente. Não só pela importância ecológica, mas porque sempre foi um ponto de acesso quando discutimos transformação, com uma sociedade civil forte e lideranças marcantes. Para muitos atores de transformação social, como eu, é uma fonte de inspiração. Ou era – sei que vocês estão vivendo tempos difíceis, moro em um país governado por Donald Trump desde 2016. Estamos encarando dias sombrios, não só por abalos ecológicos, mas por disrupções políticas. E estou interessado em ver como atores de transformação social podem responder a essas situações. Quero aprender o que está acontecendo no Brasil e conectar com o que outros movimentos de mudança estão fazendo em outras partes do mundo.
“Se quisermos viver em uma democracia, precisamos reinventar a educação, desenvolver a economia e atualizar o processo político”
Otto Scharmer
E que impressões você teve até agora? Em geral, a situação atual é vista como uma questão entre “esquerda e direita”. Para mim, é um conflito entre “aberto e fechado”. Vale para saber como lidamos com minorias — quer dizer, basicamente, quem é diferente de nós — , meio ambiente e educação. O movimento ao redor de Bolsonaro, Orbán [na Hungria] ou Salvini [na Itália] é de congelamento nessas questões. No caso americano, dá quase pra entender o que levou a vitória do nosso presidente: muitos cidadãos desempregados, sentindo-se esquecidos no país, jogaram uma bomba no Capitólio, e a bomba era Donald Trump. Se você não se prepara para lidar com as mudanças pró-minorias, meio ambiente e educação, fica paralisado por sentimentos de ódio, medo e ignorância – isso é estar fechado. Na direção oposta, é preciso cultivar curiosidade, compaixão e coragem para abrir corações e mentes. Se quisermos viver em uma democracia, precisamos reinventar a educação, desenvolver a economia e atualizar o processo político, para que todas as vozes sejam ouvidas.
Pensando na sua Teoria U, estaríamos globalmente no fundo da letra U? Sim, estamos em um ponto profundo, mas as coisas podem tomar um entre dois rumos: um ciclo de cocriação ou um ciclo de destruição. Entra aí a importância dos mais novos e dos movimentos para virar o jogo para o primeiro. Jovens ativistas, principalmente mulheres, estão construindo essa liderança, pressionando os mais velhos — homens brancos nas esferas institucionais de poder. Na Europa, um movimento internacional de greves de estudantes contra as mudanças climáticas [liderado pela adolescente sueca Greta Thunberg]. Nos Estados Unidos, um green new deal, que busca transformar o país em uma economia de carbono neutro até 2030 [proposto pela deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez]. A transição de um egossistema para um ecossistema implica ultrapassar suas ideias de si e do mundo e abrir a mente para dialogar com quem pensa diferente.
A transformação para um modelo ‘aberto’ é possível em um país mais ‘fechado’, como a China? Sim, num processo bottom-up, de baixo para cima. A China é fechada politicamente, mas aberta economicamente. Embora o país tenha um partido único, que precisa aprender a lidar com questões de direitos civis e humanos, o governo soma conquistas notáveis de inovação tecnológica e erradicação da pobreza. É complexo, pois há muitas nuances entre elementos abertos e fechados. Tenho feito workshops para iniciativas na China em três eixos: estado, empresa e sociedade civil. Em Pequim, há o projeto Jing-Jin-Ji, que pretende juntar três cidades [Beijing, Tianjin, Hebei] em uma megalópole. É uma ideia que reúne diferentes atores – e atuei junto a um comitê chinês para levar o “processo U” para pensar estratégias de desenvolvimento nacional. O case de empresa foi a Alibaba, a gigante de tecnologia que cumpriu um papel importante de empoderar empreendedores no país. E, na sociedade civil, a atuação é mais fluida, pois criei uma plataforma com conteúdos do meu curso no MIT, que me permitiu abrir a possibilidade de e-learning e ativar ciclos de aprendizado, originando diversos projetos da sociedade civil. Também foi interessante levar minha teoria para o caso chinês, onde muitos me disseram: olha, isso é Confúcio, Tao ou Buda. Quer dizer, eu estava propondo o “processo U”, consciência, transformação e tudo mais, e eles já tinham essas referências.
Você acredita que é possível mudar o capitalismo? Ou vislumbra outro modelo? Estamos à espera do inevitável, o colapso do sistema atual e o surgimento de um novo. As discussões sobre modelos são antigas. Em 1989, foi o primeiro colapso de uma alternativa, com a queda do Muro de Berlim. Em 1991, o fim da União Soviética. O sistema socialista não vingou. Mas agora o capitalismo está batendo no muro, ecologicamente e politicamente. A meu ver, o futuro é o pós-capitalismo, um sistema que economicamente sirva ao bem-estar de todos (e não de privilegiados) e que politicamente considere liderança, inteligência e democracia para o desenvolvimento das nações. Vivemos tempos difíceis, marcados por duas narrativas: uma diz que o céu está caindo, não há nada a fazer; outra diz que é a hora de um despertar global de um grassroots movement para impulsionar transformação. Esta é a chave: ficamos distraídos discutindo sistemas antigos e não pensamos nas alternativas para um novo. Mas o futuro já está aqui.